O Grande Sertão: Veredas na interpretação teatral de Bia Lessa – Uma resenha
Faustino Teixeira
Bem interessante o texto de Livia de Sá Baião (PUC/RJ) sobre o sertão de Bia Lessa, publicado na revista Eixo Roda. Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 283-306, 2019)
A autora tem como objetivo em seu trabalho "refletir sobre a releitura dramática que a diretora Bia Lessa fez da obra Grande Sertão: Veredas (GSV), de Guimarães Rosa” (BAIÃO, 2019, p. 283).
Reconhece a autora que a adaptação foi memorável: foram 4 meses de ensaios, e seis horas de ensaio por dia. A peça chegava inicialmente a durar 3 horas e 50 minutos, depois reduzida para 2 horas e 30 minutos. E uma convicção firme da diretora era manter-se fiel ao texto.
Como indica Livia, Rosa "escreve a partir da tradição oral (...). Rosa anotava o que ouvia de homens doutos, vaqueiros e sertanejos, registrava quadras, cantigas e histórias, perpetuava vozes no espaço branco do papel" (BAIÃO, 2019, p. 286). Rosa descreve o seu processo criativo comparando-se a um "feiticeiro da palavra", num processo alquímico (LORENZ, 1983, p. 85).
Os primeiros dois terços da peça, diz Livia, correspondem às primeiras 160 páginas do livro. É uma escritura que desafia o tempo. Ele deixa de ser simplesmente cronológico para assumir um lugar "individual, subjetivo e indivisível" (BAIÃO, 2019, p. 290).
Bia Lessa conseguiu fazer "com que o jorro narrativo de 600 página" coubessem "no curto espaço do tempo cênico". Para os que não tinham familiaridade com o enredo, a peça não era fácil: "Para os que não conhecem o enredo, é muito difícil seguir e compreender integralmente o que está acontecendo no palco" (BAIÃO, 2019, p. 292).
E ali acontece muito coisa impressionante. Como sugere Artaud, uma peça verdadeira "perturba o repouso dos sentidos". E foi o que vimos nesse fantástico trabalho, que tive o prazer de assistir duas vezes: uma em Niterói e outra no Rio de Janeiro. GSV é um "monstro que permanece selvagem, até mesmo quando adestrado por competentes e exímios treinadores" (SANTIAGO, 2017, p. 96) (Silviano Santiago).
Em seu texto, Lívia faz menção a alguns momentos decisivos da peça, como a impecável cena da morte dos cavalos, interpretada magistralmente por Luisa Arraes. Ela “descreve os movimentos finais dos animais, a terrível imagem vai surgindo diante dos olhos da plateia, tendo apenas os atores agarrados aos andaimes ´sacolejados esgalopenado` como suporte para a ilusão” (BAIÃO, 2019, p. 297). Na peça, os corpos "transitam, num incessar devir, entre personagens masculinos e femininos, bichos, planta e pedras (...). Homens se metamorfoseiam em bezerro, cães, urubus, escorpiões, cactos e buritis" (BAIÃO, 2019, p. 295).
Bia Lessa consegue inserir o espectador no universo rosiano, "onde os dedos viram armas, patas, espinhos. Braços que abraçam, atiram, voam, nadam (...), onde os olhos de um cavalo têm muito mais a dizer do que a eloquência humana. Um mundo em que bois falam, burros se salvam onde homens se afogam e morros mandam recados que salvam os homens" (BAIÃO, 2029, p. 296).
Em carta de Rosa para sua tradutora inglesa, Harriet de Onís, em 1959, ele diz que o que procura fazer é "chocar, ´estranhar` o leitor, não deixar que ele repouse nas bengala dos lugares comuns". Diz que seu intuito é provocar o leitor a "enfrentar um pouco o texto, como a um animal bravo e vivo" (VERNALGIERI, 1993, p. 100).
Sublinha ainda Livia: "As mudanças de personagens, o devir animal, os paus que viram pernas de cavalos, os dedos que viram armas, desvelam toda a teatralidade do teatro" (BAIÃO, 2019, p. 297).
Como gosta de sublinhar Bia Lessa em suas apresentações, "a palavra é apenas uma pequena parte do personagem. É o que dizia também Rosa: "o corpo não traslada, mas muito sabe, advinha se não entende" (BAIÃO, 2029, p. 299). A diretora exige tudo de seus personagens, uma entrega total: “Não se faz o Grande Sertão pela metade, ou estamos ou não estamos” (BAIÃO, 2019, p. 298).
Não foi tarefa fácil para Bia Lessa, mas o resultado alcançado foi magnífico, é o que acho depois de ter visto a peça com tanta atenção. A diretora estava diante de um dos mais impressionantes textos literários de todos os tempos. Como disse Rosa ao seu tradutor alemão: "A gente tem de escrever para setecentos anos. Para o Juízo Final" (ROSA, 2003, p. 234).
Referências Bibliográficas:
BAIÃO, Livia de Sá. O sertão de Bia Lessa. Eixo Roda, v. 28, n. 1, p. 283-306, 2019.
LORENZ, G. Diálogo com Guimarães Rosa. In: COUTINHO, E. Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983, p. 62-97.
ROSA, J.G. Correspondência com seu tradutor alemão Cur Meyer-Clason. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003.
SANTIAGO, Silviano. Genealogia da ferocidade: ensaio sobre Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Recife: CEPE, 2017.
VERLANGIERI, I.V. Guimarães Rosa – correspondência inédita com a tradutora norte-americana Harriet de Onis. 1993. Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista, Araraquara, 1993.
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