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sábado, 24 de outubro de 2020

Francisco e o desafio da diversidade religiosa

Francisco e o desafio da diversidade religiosa

Faustino Teixeira

PPCIR/UFJF 


Acho que a igreja católica tem ainda grande dificuldade de dar um passo teológico para além do inclusivismo. E penso que isso se deve também ao peso  exercido por declarações tradicionais, inclusive do Vaticano II (1962-1965) e da declaração Dominus Iesus, sobre a uni cidade e a universalidade salvífica de Jesus Cristo e da igreja (2000). Essa última declaração, por exemplo, continua como uma neblina de exclusivismo, que rege o caminho e a percepção de muitos cristãos. Sobretudo a ideia de que as outras religiões tem “elementos de religiosidade”, mas não de “origem divina” (DI 21); e que objetivamente “se encontram numa condição gravemente deficitária, se comparada com aqueles que na igreja têm a plenitude dos meios de salvação” (DI 22)

 

O papa Francisco evite entrar diretamente na questão, mas começa a refletir pelas bordas, anunciando uma visão diferente. Ajuda, por exemplo, a colocar no repertório da reflexão a questão da humildade e da contingência, essenciais para qualquer diálogo. Em conversa com o pe. Spadaro em 2013 sinaliza que “se uma pessoa diz que encontrou Deus com certeza total e não aflora uma margem de incerteza, então não está bem”. Isso, evidentemente, vale também para a igreja católica.

 

Em outra conversa com Eugenio Scalfari, de grande riqueza, também em 2013, confirma sua fé em Deus, mas não num Deus católico, pois reconhece que não há um Deus católico, mas simplesmente Deus. E que para ele, Jesus Cristo é o caminho de acesso a esse Mistério sempre maior, que não está aprisionado em religião nenhuma.

 

Reconhece ainda quem o valor fundamental que decide a salvação não é uma crença, mas o exercício do amor. O amor, diz Francisco, “é o único modo de amar a Deus”; é o “único modo que Jesus nos indicou para encontrar o caminho da salvação”. 

 

Em sua caminhada, as religiões respondem ao apelo de Deus “através daquilo que é bom nas suas próprias tradições religiosas, e seguindo os ditames da sua consciência” (DA 29). Todos os caminhos religiosos, reconhece Francisco, estão na rota de Deus, mediante a prática da bondade, da honradez e da nobreza de alma. Nenhuma religião encontra-se em situação “gravemente deficitária” em relação ao cristianismo. Na verdade, reconhece Francisco, que “a diversidade é bela (EG 230). Dá um passo aqui em direção ao reconhecimento de um pluralismo de princípio.

 

Em sua última encíclica, Fratelli Tutti (FT), sobre a fraternidade e amizade social (2020), Francisco levanta uma bela discussão entre a complementaridade que se dá entre o valor da identidade e a abertura dialogal. Não há tensão entre os dois movimentos. No cerne de sua perspectiva, a defesa da liberdade religiosa (FT 279). Reconhece que “uma sã abertura nunca ameaça a identidade”. Mais ainda, a busca por uma nova síntese, encontrada no caminho dialogal, favorece o enriquecimento mútuo (FT 148). Quando se hospeda o ponto de vista do outro, torna-se possível “reconhecer melhor as peculiaridades da sua própria pessoa e cultura: as suas riquezas, possibilidades e limites” (FT 147).

 

Francisco abraça o diálogo sem se perguntar por suas razões. Aliás, o diálogo verdadeiro “tem o seu próprio Valor” (DA 29), e não pode ser entendido em hipótese alguma como caminho para a conversão. Francisco assinala que “não é necessário dizer para que serve o diálogo”, mas sim buscar operar o diálogo com os recursos que encontramos no caminho. 

 

O papa reconhece com alegria que “outros bebem de outras fontes”, distintas daquelas que alimentam os cristãos, que no caso são regidos pela “música do evangelho” (FT 277). A novidade da reflexão papal está em superar a ideia de objetividade, que incluiria todos os crentes, dentro de um mesmo prisma cristã, como condição necessária para o encontro com Deus. Permanece, porém, presente uma visão inclusivista em alguns momentos da encíclica, quando Francisco recorre à declaração conciliar Nostra Aetate, um documento sobre a relação com os “não-cristãos”. Aqui percebemos um limite na reflexão de Francisco. Temos que superar o inclusivismo a todo custo, como condição de saúde religiosa num mundo plural. Não podemos mais continuar repetindo que as outras religiões, apesar de conterem o que há de “verdadeiro e santo”, refletem simplesmente “raios” de uma “verdade que ilumina todos os homens” (NA 22 – citada na FT 277.

 

O caminho está aberto, e esse desafio deverá ser enfrentado pela igreja de frente, com coragem e ousadia, superando de vez o que há de problemático e injusto na Dominus Iesus, assinada pelo cardeal Ratzinger.

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