Laudato Si – Carta Encíclica de Francisco
sobre o cuidado da casa comum (Trechos escolhidos: Faustino Teixeira)
Edição Portuguesa = do portal do Vaticano:
Faustino Teixeira
PPCIR/UFJF
Apresentação
. A nossa casa comum se pode comparar ora a uma irmã, com quem partilhamos a existência, ora a uma boa mãe, que nos acolhe nos seus braços (1)
. Esquecemo-nos de que nós mesmos somos terra (cf. Gn 2, 7). O nosso corpo é constituído pelos elementos do planeta; o seu ar permite-nos respirar, e a sua água vivifica-nos e restaura-nos (2)
. Francisco e a comunicação com toda a criação (11)
. São Francisco, fiel à Sagrada Escritura, propõe-nos reconhecer a natureza como um livro esplêndido onde Deus nos fala e transmite algo da sua beleza e bondade (12)
. A busca de um desenvolvimento sustentável e integral (13)
. A necessidade de uma nova solidariedade universal (14)
. a convicção de que tudo está estreitamente interligado no mundo (16)
Capítulo Primeiro: O que está acontecendo em nossa casa
. A contínua aceleração das mudanças na humanidade e no planeta junta-se, hoje, à intensificação dos ritmos de vida e trabalho, que alguns, em espanhol, designam por «rapidación». Embora a mudança faça parte da dinâmica dos sistemas complexos, a velocidade que hoje lhe impõem as acções humanas contrasta com a lentidão natural da evolução biológica. (18)
. A terra, nossa casa, parece transformar-se cada vez mais num imenso depósito de lixo (21)
. Estamos perante um preocupante aquecimento do sistema climático (23)
. Numerosos estudos científicos indicam que a maior parte do aquecimento global das últimas décadas é devida à alta concentração de gases com efeito de estufa (anidrido carbónico, metano, óxido de azoto, e outros) emitidos sobretudo por causa da actividade humana (…) Isto é particularmente agravado pelo modelo de desenvolvimento baseado no uso intensivo de combustíveis fósseis, que está no centro do sistema energético mundial. E incidiu também a prática crescente de mudar a utilização do solo, principalmente o desflorestamento para finalidade agrícola (23)
. Se a tendência actual se mantiver, este século poderá ser testemunha de mudanças climáticas inauditas e duma destruição sem precedentes dos ecossistemas, com graves consequências para todos nós (24)
. Infelizmente, verifica-se uma indiferença geral perante estas tragédias, que estão acontecendo agora mesmo em diferentes partes do mundo. A falta de reacções diante destes dramas dos nossos irmãos e irmãs é um sinal da perda do sentido de responsabilidade pelos nossos semelhantes (25)
. Um problema particularmente sério é o da qualidade da água disponível para os pobres, que diariamente ceifa muitas vidas (29)
. A perda de florestas e bosques implica simultaneamente a perda de espécies que poderiam constituir, no futuro, recursos extremamente importantes não só para a alimentação mas também para a cura de doenças e vários serviços (32)
. É verdade que o ser humano deve intervir quando um geosistema cai em estado crítico, mas hoje o nível de intervenção humana numa realidade tão complexa como a natureza é tal, que os desastres constantes causados pelo ser humano provocam uma nova intervenção dele de modo que a actividade humana torna-se omnipresente, com todos os riscos que isto implica (34)
. Este nível de intervenção humana, muitas vezes ao serviço da finança e do consumismo, faz com que esta terra onde vivemos se torne realmente menos rica e bela, cada vez mais limitada e cinzenta, enquanto ao mesmo tempo o desenvolvimento da tecnologia e das ofertas de consumo continua a avançar sem limites (34)
. Mencionemos, por exemplo, os pulmões do planeta repletos de biodiversidade que são a Amazónia e a bacia fluvial do Congo, ou os grandes lençóis freáticos e os glaciares. A importância destes lugares para o conjunto do planeta e para o futuro da humanidade não se pode ignorer (38)
. Os ecossistemas das florestas tropicais possuem uma biodiversidade de enorme complexidade, quase impossível de conhecer completamente, mas quando estas florestas são queimadas ou derrubadas para desenvolver cultivos, em poucos anos perdem-se inúmeras espécies, ou tais áreas transformam-se em áridos desertos. Todavia, ao falar sobre estes lugares, impõe-se um delicado equilíbrio, porque não é possível ignorar também os enormes interesses económicos internacionais que, a pretexto de cuidar deles, podem atentar contra as soberanias nacionais (38).
. Hoje, muitos dos recifes de coral no mundo já são estéreis ou encontram-se num estado contínuo de declínio: «Quem transformou o maravilhoso mundo marinho em cemitérios subaquáticos despojados de vida e de cor?»[25]Este fenómeno deve-se, em grande parte, à poluição que chega ao mar resultante do desflorestamento, das monoculturas agrícolas, das descargas industriais e de métodos de pesca destrutivos, nomeadamente os que utilizam cianeto e dinamite. É agravado pelo aumento da temperatura dos oceanos (41)
. Visto que todas as criaturas estão interligadas, deve ser reconhecido com carinho e admiração o valor de cada uma, e todos nós, seres criados, precisamos uns dos outros (42)
. De facto, a deterioração do meio ambiente e a da sociedade afectam de modo especial os mais frágeis do planeta (48)
. O impacto dos desequilíbrios actuais manifesta-se também na morte prematura de muitos pobres, nos conflitos gerados pela falta de recursos e em muitos outros problemas que não têm espaço suficiente nas agendas mundiais (48)
. Mas, hoje, não podemos deixar de reconhecer que uma verdadeira abordagem ecológica sempre se torna uma abordagem social, que deve integrar a justiça nos debates sobre o meio ambiente, para ouvir tanto o clamor da terra como o clamor dos pobres (49)
. Estas situações provocam os gemidos da irmã terra, que se unem aos gemidos dos abandonados do mundo, com um lamento que reclama de nós outro rumo. Nunca maltratámos e ferimos a nossa casa comum como nos últimos dois séculos (53)
. Preocupa a fraqueza da reacção política internacional. A submissão da política à tecnologia e à finança demonstra-se na falência das cimeiras mundiais sobre o meio ambiente (54)
Capítulo Segundo: O evangelho da criação
. Assim nos damos conta de que a Bíblia não dá lugar a um antropocentrismo despótico, que se desinteressa das outras criaturas (68)
. A tradição bíblica estabelece claramente que esta reabilitação implica a redescoberta e o respeito dos ritmos inscritos na natureza pela mão do Criador. Isto está patente, por exemplo, na lei do Shabbath. No sétimo dia, Deus descansou de todas as suas obras (71)
. O amor de Deus é a razão fundamental de toda a criação: «Tu amas tudo quanto existe e não detestas nada do que fizeste; pois, se odiasses alguma coisa, não a terias criado» (Sab 11, 24) (77)
. O facto de insistir na afirmação de que o ser humano é imagem de Deus não deveria fazer-nos esquecer que cada criatura tem uma função e nenhuma é supérflua. Todo o universo material é uma linguagem do amor de Deus, do seu carinho sem medida por nós. O solo, a água, as montanhas: tudo é carícia de Deus (84)
. Podemos afirmar que, «ao lado da revelação propriamente dita, contida nas Sagradas Escrituras, há uma manifestação divina no despontar do sol e no cair da noite» (85).
. «Paz, justiça e conservação da criação são três questões absolutamente ligadas, que não se poderão separar, tratando-as individualmente sob pena de cair novamente no reducionismo».[70]Tudo está relacionado, e todos nós, seres humanos, caminhamos juntos como irmãos e irmãs numa peregrinação maravilhosa (92)
. Jesus vivia em plena harmonia com a criação, com grande maravilha dos outros: «Quem é este, a quem até o vento e o mar obedecem?» (Mt 8, 27). Não Se apresentava como um asceta separado do mundo ou inimigo das coisas aprazíveis da vida (98).
. Encontrava-Se longe das filosofias que desprezavam o corpo, a matéria e as realidades deste mundo. Todavia, ao longo da história, estes dualismos combalidos tiveram notável influência nalguns pensadores cristãos e desfiguraram o Evangelho (98)
Capítulo Terceiro: A raiz humana da crise ecológica
. Sempre se verificou a intervenção do ser humano sobre a natureza, mas durante muito tempo teve a característica de acompanhar, secundar as possibilidades oferecidas pelas próprias coisas; tratava-se de receber o que a realidade natural por si permitia, como que estendendo a mão. Mas, agora, o que interessa é extrair o máximo possível das coisas por imposição da mão humana, que tende a ignorar ou esquecer a realidade própria do que tem à sua frente. Por isso, o ser humano e as coisas deixaram de se dar amigavelmente a mão, tornando-se contendentes. Daqui passa-se facilmente à ideia dum crescimento infinito ou ilimitado, que tanto entusiasmou os economistas, os teóricos da finança e da tecnologia (106)
. Hoje o paradigma tecnocrático tornou-se tão dominante que é muito difícil prescindir dos seus recursos, e mais difícil ainda é utilizar os seus recursos sem ser dominados pela sua lógica (108).
. Nos tempos modernos, verificou-se um notável excesso antropocêntrico, que hoje, com outra roupagem, continua a minar toda a referência a algo de comum e qualquer tentativa de reforçar os laços sociais (116)
. Uma apresentação inadequada da antropologia cristã acabou por promover uma concepção errada da relação do ser humano com o mundo. Muitas vezes foi transmitido um sonho prometeico de domínio sobre o mundo, que provocou a impressão de que o cuidado da natureza fosse actividade de fracos (116)
. Mas a interpretação correcta do conceito de ser humano como senhor do universo é entendê-lo no sentido de administrador responsável (116)
. Tudo está interligado. Se o ser humano se declara autónomo da realidade e se constitui dominador absoluto, desmorona-se a própria base da sua existência, porque «em vez de realizar o seu papel de colaborador de Deus na obra da criação, o homem substitui-se a Deus, e deste modo acaba por provocar a revolta da natureza» (117)
Capítulo Quarto: Uma ecologia integral
. Neste sentido, é indispensável prestar uma atenção especial às comunidades aborígenes com as suas tradições culturais. Não são apenas uma minoria entre outras, mas devem tornar-se os principais interlocutores, especialmente quando se avança com grandes projectos que afectam os seus espaços (146)
. Com efeito, para eles, a terra não é um bem económico, mas dom gratuito de Deus e dos antepassados que nela descansam, um espaço sagrado com o qual precisam de interagir para manter a sua identidade e os seus valores. Eles, quando permanecem nos seus territórios, são quem melhor os cuida. Em várias partes do mundo, porém, são objecto de pressões para que abandonem suas terras e as deixem livres para projectos extractivos e agro-pecuários que não prestam atenção à degradação da natureza e da cultura (146)
. Que tipo de mundo queremos deixar a quem vai suceder-nos, às crianças que estão a crescer? Esta pergunta não toca apenas o meio ambiente de maneira isolada, porque não se pode pôr a questão de forma fragmentária. Quando nos interrogamos acerca do mundo que queremos deixar, referimo-nos sobretudo à sua orientação geral, ao seu sentido, aos seus valores (160)
. já não basta dizer que devemos preocupar-nos com as gerações futuras; exige-se ter consciência de que é a nossa própria dignidade que está em jogo (160)
. As previsões catastróficas já não se podem olhar com desprezo e ironia. Às próximas gerações, poderíamos deixar demasiadas ruínas, desertos e lixo. O ritmo de consumo, desperdício e alteração do meio ambiente superou de tal maneira as possibilidades do planeta, que o estilo de vida actual – por ser insustentável – só pode desembocar em catástrofes, como aliás já está a acontecer periodicamente em várias regiões (161)
. A dificuldade em levar a sério este desafio tem a ver com uma deterioração ética e cultural, que acompanha a deterioração ecológica (162)
Capítulo Quinto: Algumas linhas de orientação e ação
. Um mundo interdependente não significa unicamente compreender que as consequências danosas dos estilos de vida, produção e consumo afectam a todos, mas principalmente procurar que as soluções sejam propostas a partir duma perspectiva global e não apenas para defesa dos interesses de alguns países (164)
. Sabemos que a tecnologia baseada nos combustíveis fósseis – altamente poluentes, sobretudo o carvão mas também o petróleo e, em menor medida, o gás – deve ser, progressivamente e sem demora, substituída. Enquanto aguardamos por um amplo desenvolvimento das energias renováveis, que já deveria ter começado, é legítimo optar pelo mal menor ou recorrer a soluções transitórias (165)
. Os vértices mundiais sobre o meio ambiente dos últimos anos não corresponderam às expectativas, porque não alcançaram, por falta de decisão política, acordos ambientais globais realmente significativos e eficazes (166)
. Relativamente às mudanças climáticas, os progressos são, infelizmente, muito escassos (169)
. A maior parte dos habitantes do planeta declara-se crente, e isto deveria levar as religiões a estabelecerem diálogo entre si, visando o cuidado da natureza, a defesa dos pobres, a construção duma trama de respeito e de fraternidade. De igual modo é indispensável um diálogo entre as próprias ciências, porque cada uma costuma fechar-se nos limites da sua própria linguagem, e a especialização tende a converter-se em isolamento e absolutização do próprio saber (201)
Capítulo Sexto: Educação e Espiritualidade Ecológica
. Muitas coisas devem reajustar o próprio rumo, mas antes de tudo é a humanidade que precisa de mudar. Falta a consciência duma origem comum, duma recíproca pertença e dum futuro partilhado por todos. Esta consciência basilar permitiria o desenvolvimento de novas convicções, atitudes e estilos de vida (202)
. A situação actual do mundo «gera um sentido de precariedade e insegurança, que, por sua vez, favorece formas de egoísmo colectivo» (204)
. A Carta da Terra convidava-nos, a todos, a começar de novo deixando para trás uma etapa de autodestruição, mas ainda não desenvolvemos uma consciência universal que o torne possível (…) Que o nosso seja um tempo que se recorde pelo despertar duma nova reverência face à vida (207)
. Sempre é possível desenvolver uma nova capacidade de sair de si mesmo rumo ao outro (208)
. A educação ambiental deveria predispor-nos para dar este salto para o Mistério, do qual uma ética ecológica recebe o seu sentido mais profundo (210)
. Desejo propor aos cristãos algumas linhas de espiritualidade ecológica que nascem das convicções da nossa fé, pois aquilo que o Evangelho nos ensina tem consequências no nosso modo de pensar, sentir e viver (216)
. Falta-lhes, pois, uma conversão ecológica, que comporta deixar emergir, nas relações com o mundo que os rodeia, todas as consequências do encontro com Jesus (217)
. Recordemos o modelo de São Francisco de Assis, para propor uma sã relação com a criação como dimensão da conversão integral da pessoa (218)
. A espiritualidade cristã propõe um crescimento na sobriedade e uma capacidade de se alegrar com pouco. É um regresso à simplicidade que nos permite parar a saborear as pequenas coisas, agradecer as possibilidades que a vida oferece sem nos apegarmos ao que temos nem entristecermos por aquilo que não possuímos (222)
. A paz interior das pessoas tem muito a ver com o cuidado da ecologia e com o bem comum, porque, autenticamente vivida, reflecte-se num equilibrado estilo de vida aliado com a capacidade de admiração que leva à profundidade da vida (225)
. Uma ecologia integral exige que se dedique algum tempo para recuperar a harmonia serena com a criação (225)
. É necessário voltar a sentir que precisamos uns dos outros, que temos uma responsabilidade para com os outros e o mundo, que vale a pena ser bons e honestos (229)
. Uma ecologia integral é feita também de simples gestos quotidianos, pelos quais quebramos a lógica da violência, da exploração, do egoism (230)
. juntamente com a importância dos pequenos gestos diários, o amor social impele-nos a pensar em grandes estratégias que detenham eficazmente a degradação ambiental e incentivem uma cultura do cuidado que permeie toda a sociedade (231)
. há um mistério a contemplar numa folha, numa vereda, no orvalho, no rosto do pobre.[159]O ideal não é só passar da exterioridade à interioridade para descobrir a acção de Deus na alma, mas também chegar a encontrá-Lo em todas as coisas (233)
. Não fugimos do mundo, nem negamos a natureza, quando queremos encontrar-nos com Deus. Nota-se isto particularmente na espiritualidade do Oriente cristão (235)
. Com efeito a Eucaristia é, por si mesma, um acto de amor cósmico. «Sim, cósmico! Porque mesmo quando tem lugar no pequeno altar duma igreja da aldeia, a Eucaristia é sempre celebrada, de certo modo, sobre o altar do mundo» (236)
. Assim, a espiritualidade cristã integra o valor do repouso e da festa. O ser humano tende a reduzir o descanso contemplativo ao âmbito do estéril e do inútil, esquecendo que deste modo se tira à obra realizada o mais importante: o seu significado. Na nossa actividade, somos chamados a incluir uma dimensão receptiva e gratuita, o que é diferente da simples inactividade. Trata-se doutra maneira de agir, que pertence à nossa essência (237)
. O Espírito, vínculo infinito de amor, está intimamente presente no coração do universo, animando e suscitando novos caminhos (238)
. No coração deste mundo, permanece presente o Senhor da vida que tanto nos ama. Não nos abandona, não nos deixa sozinhos, porque Se uniu definitivamente à nossa terra e o seu amor sempre nos leva a encontrar novos caminhos (245)
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