A Via do Cotidiano. Em torno da filosofia Zen
Faustino Teixeira
Aproveitei esse início de janeiro de 2020 para passar os olhos nos livros de Byung-Chul Han, publicados agora pela Editora Vozes. São livros pequenos, densos e maravilhosos. Aguardo a publicação de um que é precioso sobre a viagem ao jardim (Louvor à Terra)[1].
Os trabalhos de Byung-Chul, que significa "luz clara", são inspiradores, favorecendo insights maravilhosos. Gosto em particular dos livros que tratam temas relacionados ao zen budismo, como no caso da "Filosofia do Zen Budismo". Que preciosidade! Em outra obra, sobre o "Bom entretenimento", há um capítulo especial sobre o Satori, onde a questão da cotidianidade vem abordada com singularidade.
Em primeiro lugar podemos sinalizar a tomada de consciência da impermanência. É o caminho primários para acessar a grandeza do Zen. Como indicou Clodomir Andrade em seu livro, "Budismo e a filosofia indiana antiga" (ANDRADE, 2015, p. 64), "se as coisas não possuem uma substância, um ãtman, elas também não podem ser consideradas eternas, imutáveis; destarte o conceito de anitya, a impermanência, a mudança a momentaneidade, a natureza cambiante de todos os fenômenos". E simultaneamente, a conscientização da interdependência entre todas as coisas: originação interdependente.
Um outro dado presente nas religiões do Extremo Oriente, e em particular no Budismo Zen é uma "postura afirmativa frente ao existente" (HAN, 2019, p. 92). A facticidade é vista em alta consideração. Não se trata de uma tradição que louva a fuga do mundo, mas a confiança no mundo. Uma confiança que se envolve pela noção positiva do nada, na medida em que supera-se a ideia de solidez e fixação. Na verdade, "tudo flui e passa" (HAN, 2019,b, p. 92). É o que igualmente sublinha Rainer Maria Rilke, na segunda elegia de Duíno, quando concentra-se na ideia do “dissipar-se”, típico da temporalidade, que corrói os esforços de fixação ou realização ontológica. Ele assinala:
Tal o orvalho da manhã
e o calor do alimento,
o que é nosso
flutua e desaparece
(RILKE, 2013, p. 21)
Não há também nostalgia, o que nos faz lembrar outro poema de Rilke em torno da Fonte Romana:
Ela mesma a escorrer na bela pia,
em círculos e círculos, constantemente,
impassível e sem nostalgia,
descendo pelo musgo circundante
ao espelho da última bacia
que faz sorrir, fechando a travessia (CAMPOS, 2001, p. 79)
em círculos e círculos, constantemente,
impassível e sem nostalgia,
descendo pelo musgo circundante
ao espelho da última bacia
que faz sorrir, fechando a travessia (CAMPOS, 2001, p. 79)
A paixão e nostalgia, típicas do humano, produzem, na verdade, sofrimento (HAN, 2019c, p. 94). Há que se desapegar. Na tradição Zen, o lugar da iluminação é o mundo cotidiano, do aqui e do agora (HAN, 2019a, p. 21-22). O espírito Zen é o "espírito do cotidiano" (Dogen)[2]. Não há igualmente muita ascese, mas praticidade. Como numa conhecida passagem de Lin-Chi: "Quando a fome chega, como arroz, quando o sono chega, fecho os olhos. Tolos riem de mim, mas o sábio entende" (HAN, 2019b, p. 95). Nada de muito excepcional: simplesmente viver, como dizia o mestre Lin Chi (IZUTSU, 2009, p. 17)
Enveredar-se no cotidiano com calma e serenidade, sem pressa ou ansiedade. É como na súplica de Fausto: "Demora-te ainda, és tão belo". A beleza de cada passo do cotidiano é um convite fantástico à demora (HAN. 2019c, p. 96). Temos um exemplo singular nos filmes de Naomi Kawase, que prioriza essa dimensão da contemplação do cotidiano.
Daí ser o Budismo Zen uma religião da imanência, fundamentalmente. Não há centro fixo, pois ele está em todo lugar. A via, o caminho, não conduz a transcendência alguma. Sua fidelidade originária é o Aquém, o momento presente. Não há nada de “sagrado” ou extraterrestre, mas o salto no cotidiano (HAN, 2019a, p. 44). Como dizia Rilke: "Estar aqui é esplendor". E tudo vivido com simplicidade, rompendo as cadeias do "por que". Não há arrebatamento especial na “iluminação” (satori), nada de “extático”, mas “o despertar para o comum. Não se desperta em um Lá extraordinário, mas sim em um aqui ancestral, em uma profunda imanência” (HAN, 2019a, p. 43).
Referências:
ANDRADE, Clodomir. Budismo e a filosofia indiana antiga. São Paulo/Juiz de Fora: Fonte Editorial/PPCIR, 2015.
CAMPOS, Augusto de. Coisas e anjos de Rilke. São Paulo: Perspectiva.
CAMPOS, Augusto de. Coisas e anjos de Rilke. São Paulo: Perspectiva.
HAN, Byung-Chul. Filosofia do Zen Budismo. Petrópolis: Vozes, 2019a.
HAN, Byung-Chul. Bom entretenimento. Petrópolis: Vozes, 2019b.
HAN, Byung-Chul. A salvação do belo. Petrópolis: Vozes, 2019c.
HAN, Byung-Chul. Bom entretenimento. Petrópolis: Vozes, 2019b.
HAN, Byung-Chul. A salvação do belo. Petrópolis: Vozes, 2019c.
HAN, Byung-Chul. Loa a la Tierra. Un viaje al jardín. Barcelona: Herder, 2019d.
HERRIGEL, Eugen. A arte cavalheiresca do arqueiro zen. São Paulo: Pensamento.
IZUTSU, Toshihiko. Hacia una filosofía deli budismo zen. Madrid: Trotta, 2009.
SHIBATA, Masumi. Passe sans porte. Villaine et Belhomme: Paris, 1968.
[1]Byung-Chul Han. Loa a la Tierra. Un viaje al jardín. Barcelona: Herder, 2019.
[2]“O coração cotidiano é o caminho”: Masumi Shibata. Passe sans porte. Villaine et Belhomme: Paris, 1968, p. 79 (regra 19). E também: Daisetz T. Suzuki, na introdução do livro de Eugen Herrigel. A arte cavalheiresca do arqueiro zen, p. 11: “O Zen é a consciência cotidiana”.
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