Misericordiar: a viagem de Francisco a Myanmar e Bangladesh
Faustino Teixeira
Não há dúvida, um dos traços mais
importantes do pontificado de Francisco é a prática da Misericórdia, mas também
da Hospitalidade. Desde o início de sua presença apostólica ele vem marcando
sua atuação pela retomada ardorosa desta convocação humanitária. Ele mesmo
gosta de dizer que “o nome de Deus é Misericórdia”. Num tempo marcado pela
desesperança, por dolorosos episódios de ódio entre povos, culturas e
religiões, bem como pelos acirramentos
identitários, Francisco solta a voz em favor do toque da Misericórdia. E
sublinha: “Só quem foi tocado, acariciado pela ternura da misericórdia, conhece
verdadeiramente o Senhor”[1]. E
quando fala em misericórdia indica que ela comporta obras de exercício de
disponibilidade corporal, que vem prolongada em misericórdia espiritual.
Francisco recorre ao grande místico espanhol, João da Cruz, para nos lembrar
que “na noite da vida, seremos julgados pelo amor”[2].
Ao lado da Misericórdia, o convite à
hospitalidade. É outro traço das inúmeras mensagens e homilias de Francisco,
como as que pronunciou nesta recente viagem a Myanmar e Bangladesh no final de
novembro e início de dezembro de 2017. De seu coração brota o apelo mais
sincero em favor do diálogo e da defesa da diferença. Um mote que vem se
repetindo ao longo de sua atuação evangélica, como tão bem expresso na
exortação apostólica Evangelii Gaudium:
“A diversidade é bela”[3].
Na saudação proferida por Francisco no encontro com os líderes religiosos de
Myanmar, no arcebispado de Rangún (28/11/2017) ele foi enfático ao sublinhar
que “a paz se constrói no coro das diferenças”, e assim também a unidade.
Contra uma tendência crescente na linha da uniformidade, o papa enfatiza a
riqueza das diferenças, sejam étnicas, religiosas ou populares. O diálogo se
firma a partir destas mesmas riquezas.[4]
Volta a assinalar esse traço na viagem a Bangladesh, quando indica que a
diversidade não pode ser vista como ameaça, “mas como potencial fonte de
enriquecimento e crescimento”.[5]
O testemunho que Francisco deixa
nestas duas viagens é de defesa da fraternidade, harmonia e paz entre as
religiões do mundo. Foi o que expressou no belo discurso no encontro com o
conselho supremo shanga dos monges budistas: “Sabemos, com base nas nossas
respectivas tradições espirituais, que existe realmente um caminho para
avançar, há um caminho que leva à cura, à mútua compreensão e respeito; um
caminho baseado na compaixão e no amor”.[6]
Como horizonte almejado, a vontade de conexão, firmando as essenciais redes de
relações. Na verdade, tudo está interligado, como vem afirmando Francisco desde
sua carta encíclica Laudato si
(2015). Aos monges budistas retoma este argumento, relacionando-o com a busca
da profundidade:
“O grande desafio dos nossos
dias é ajudar as pessoas a abrir-se ao transcendente; ser capazes de olhar-se
dentro em profundidade, conhecendo-se de tal modo a si mesmas que sintam a sua
interconexão com todas as pessoas; dar-se conta de que não podemos permanecer
isolados uns dos outros”.
Trata-se de um caminho que irmana Buda e São Francisco de
Assis, como convite aberto a todas as tradições religiosas.
O espírito de abertura, lembra
Francisco, desperta o “coração pulsante”, em favor de uma cultura de harmonia,
paz e encontro:
“Quanto
necessita o nosso mundo que este coração bata com força, para contrastar o
vírus da corrupção política, as ideologias religiosas destrutivas, a tentação
de fechar os olhos às necessidades dos pobres, dos refugiados, das minorias
perseguidas e dos mais vulneráveis! Quanta abertura é necessária para acolher
as pessoas ao nosso redor, especialmente os jovens que às vezes se sentem
sozinhos e confusos na busca do sentido da vida!”[7].
Em discurso no encontro
inter-religioso de Bangladesh, Francisco sublinha que a abertura do coração é
como “uma escada que alcança o Absoluto”. Num dos momentos mais sensíveis de
sua viagem, acolhe com carinho os refugiados Rohingya, e pede a eles perdão pela “indiferença do mundo”. Indica
que eles trazem consigo “o sal de Deus”, e que “a presença de Deus hoje, também
se chama ´Rohingya`”.[8]
Diante das circunstâncias adversas,
essa foi uma viagem de extrema coragem de Francisco, quando muitos indicavam a
necessidade de muita prudência e cautela. Mas o que valeu mesmo foi a
tranquilidade do papa em transmitir o que pulsa firme em seu coração, em favor
da misericórdia e hospitalidade. Não há resistências que possam impedir esse
essencial gesto evangélico.
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