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quarta-feira, 2 de julho de 2025

O amor na teia da perplexidade: em torno a um poema de Drummond

 O amor na teia da perplexidade: em torno de um poema de Drummond

Faustino Teixeira

IHU / Paz e Bem

 

Tivemos um lindo encontro ao final da aula sobre os poemas de Drummond, no Instituto Humanitas da Unisinos (IHU). Isso ocorreu em 09 de abril de 2025. Na primeira aula de cada mês, para coroar o dia, um grupo pequeno se encontra para abordar alguma questão refletida. Nesse dia, estavam 7 pessoas: eu, Paula, Alexia, Ana Maria, Mercia, Amauride e Vânia. Esse é um grupo que vem acompanhando os cursos que dou no IHU desde o primeiro semestre de 2021, depois da pandemia. Os encontros são de muita intimidade e de riqueza inaudita.

Na aula do dia, que era a terceira do curso, iniciado em 12 de março de 2025, tinha como livro de referência “O brejo das almas” (1934). Esse livro de Drummond, ao contrário de outros, não teve assim grande projeção, nem foi objeto de muitos estudos teórico. Isto talvez se deva ao fato dele ter saído entre dois livros de muito peso: Alguma poesia (1930) e Sentimento do mundo (1940). Alguns o consideram o “primo pobre” de Drummond, uma vez que se situou entre dois grandes marcos, mas isso não é absolutamente verdade. O livro é de beleza singular e traz em seu bojo reflexões que são fundamentais. 

No encontro com o pequeno grupo, a reflexão não ficou presa ao livro Brejo das almas, mas partiu, sim, de uma indagação presente num dos poemas do livro: 

“O amor no escuro, não, no claro,

é sempre triste, meu filho, Carlos,

mas não diga nada a ninguém,

ninguém sabe nem saberá

Não se mate”[1].

 

No debate, Alexia, lembrou uma passagem maravilhosa do livro de Nizami (sec XII), da tradição sufi, que aborda a dolorosa história de Layla & Majnum, que viveram uma experiência de amor falida, em razão de muitos impedimentos. Os dois passaram a vida separados. Quando, depois de muito tempo, ocorre a oportunidade do encontro entre ambos, há uma interdição que vem do mundo interior de Layla. No momento propício, que podia suscitar o enlace, ocorre algo inesperado. Majnun, que aguarda Layla sob uma palmeira, ardendo de amor e desejo, espera o sinal positivo do velho, que ficou de indicar para Layla o momento oportuno. Por sua vez, Layla não deu conta de avançar rumo ao amado querido. Ela ficou paralisada, e seu corpo inteiro tremia, como se ela estivesse profundamente enferma. Ao tentar conduzi-la com o braço em direção ao amado, ela recuou, com cortesia, e disse:

 

“Nobre senhor, nem tão longe, mas nem tão perto. Agora sou igual a uma vela ardente; um passo mais perto do fogo e eu serei consumida completamente. A proximidade traz o desastre, pois os amantes só estão seguros separados”[2].

 

Um texto que escrevi, ao preparar a aula, serviu de ponto de arranque para a reflexão. Ele se inicia com um poema de Drummond, Mineração do outro, publicado originalmente no jornal O Estado de São Paulo, em julho de 1959, e  apareceu no livro Lição de coisas (1962). 

 

Mineração do Outro

 

“Os cabelos ocultam a verdade.

Como saber, como gerir um corpo

alheio?

Os dias consumidos em sua lavra

significam o mesmo que estar morto.

 

Não o decifras, não, ao peito oferto,

mostruário de fomes enredadas,

ávidas de agressão, dormindo em concha.

Um toque, e eis que a blandícia erra em tormento,

e cada abraço tece além do braço

a teia de problemas que existir

na pele do existente vai gravando.

 

Viver-não, viver-sem, como viver

sem conviver, na praça de convites?

Onde avanço, me dou, e o que é sugado

ao mim de mim, em ecos se desmembra;

nem resta mais que indício,

pelos ares lavados,

do que era amor e, dor agora, é vício.

 

O corpo em si, mistério: o nu, cortina

de outro corpo, jamais apreendido,

assim como a palavra esconde outra

voz, prima e vera, ausente de sentido.

Amor é compromisso

com algo mais terrível do que amor?

— pergunta o amante curvo à noite cega,

e nada lhe responde, ante a magia:

arder a salamandra em chama fria”[3].

Sem dúvida, estamos diante de um poema complexo e de riqueza singular. Um grau de dificuldade que nos faz lembrar outro poema enigmático de Drummond, chamado Áporo, que foi desvendado por Davi Arrigucci Jr no livro Coração Partido[4]. Para Arrigucci, esse poema de Drummond é um dos que mais se destaca em sua obra, tratando o tema do amor. Ele revela “um momento a uma só vez ímpar e irradiante, pela alta complexidade, pela firmeza com que enfrenta o difícil, pela luz que lança nos demais que tratam do mesmo tema”[5].

O poema de Drummond é um instrumento fértil e seguro para a compreensão do enigma do outro, ajudando-nos a mergulhar no oceano inatingível da alteridade. A poeta e romancista, Lia Luft, expressou com clareza esse traço em reflexão no livro, Mar de dentro. Na sua visão, que concordo, há um “espaço de silêncio intransponível mesmo nos mais íntimos amores”[6]. A poesia de Drummond toca em pontos de sintonia com Lia Luft:

“Os cabelos ocultam a verdade.

Como saber, como gerir um corpo

alheio?”

 

“Não o decifras, não, ao peito oferto,

mostruário de fomes enredadas,

ávidas de agressão, dormindo em concha.”

 

“e cada abraço tece além do braço

a teia de problemas que existir

na pele do existente vai gravando”

 

“O corpo em si, mistério: o nu, cortina

de outro corpo, jamais apreendido”

 

Temos aqui vários indícios de uma “incomunicabilidade” com o universo daquele que está diante de nós. O outro é sempre “alheio”, estranho, estrangeiro. Lembrei-me aqui de uma reflexão profunda de Alain Montandon no “Livro da Hospitalidade”. Ele aborda o tema da “hospitalidade”[7]. Sublinha que o hóspede é sempre um estranho. A complexa relação com o outro que nos visita começa já no início: “naquela soleira, naquela porta à qual se bate e que vai se abrir para um rosto desconhecido”[8]. Diz o filósofo que o “território do outro” vem sempre resguardado por uma “sensibilidade escrupulosa”. Sem dúvida: devemos “bater devagar”, com cuidado e fineza na porta do outro. A hospitalidade jamais quebra a distância, que permanece acesa.

O trabalho do amor é complexo, sutil, delicado, desafiador. Ele pressupõe uma disponibilidade de avançar no universo do desconhecido. Há, como lembra Arrigucci, o empenho de “escavar”. Escavar de forma semelhante ao inseto no poema “Áporo” (1945)[9], que “cava, sem alarme, perfurando a terra”, mas que se defronta com um “país bloqueado”, ou com o “enlace da noite”.

Adentrando-me no poema de Drummond, Mineração do Outro, vejo que há, de fato um mistério indecifrável na experiência do "peito oferto". Quando nos "ofertamos" ao outro, sabemos, desde o início, que ele jamais será decifrado; esse outro que vem animado por um complexo "mostruário de fomes enredadas". E... curioso, suas fomes estão "ávidas de agressão", e ele dorme "em concha". E apesar de todos os abraços, de nosso movimento que convida, permanece acesa a "a teia de problemas", que não é qualquer oferta que consegue solucionar. 

Em sua lúcida reflexão, Arrigucci relaciona o trabalho do amor ao empenho de escavar, visando uma decifração possível. Ele vê no poema de Drummond, o anseio por penetrar “através de barreiras da terra, do corpo e da própria linguagem até o limite do indizível, quando, reproduzindo  a situação dramática do amante diante da noite, seu discurso se converte em imagem”[10]. Como aponta Arrigucci, na visão de Drummond o amor não é algo cordato, mas contrariado. O poeta quer, antes de tudo, inquirir a qualquer custo para debruçar-se no enigma. E ele recorre à imagem que também está no poema Áporo, que fala em cavar e perfurar a terra, visando desvendar o labirinto:

 “O amor é então aqui mineral; é físico, mas também metafísico, pois corresponde ao desejo de ir além da matéria em que penetra, na busca vã da alteridade em que mais se fragmenta e aniquila do que se reúne ao que já de antemão era perdido”[11].

Daí o recurso à bela imagem da mineração do outro, que invoca o “movimento inquiridor e sofrido a caminho do objeto fugidio que o atrai e impede de passar, mantendo-o cativo do mágico fascínio que se enreda e perde o próprio pensamento”[12]

Nesse itinerário em direção ao outro, ocorre também um trabalho do mundo interior. Não há dúvida. Somos trabalhados em nossa interioridade nessa difícil viagem rumo ao mistério do outro. Daí a imagem feliz da "mineração". Meditar sobre o amor, como mostra Arriguci, é também meditar sobre "a história da relação humana dos seres que o vivem"[13]. É árduo o trabalho de ir além do que está aí, presente na matéria:

"O esforço de minerar até o derradeiro obstáculo que se antepõe a quem ama e quer saber pode chegar a diversas consequências: a inacessível transcendência da mineração por mais que se aprofunde; o dilaceramento patético que vivem os amantes; a inevitabilidade terrível  que acompanha seu percurso com o risco do trágico; o caráter incognoscível extremo daquilo mesmo que nos atrai com o fascínio do inexplicável"[14].

Toda essa reflexão é de uma profundidade singular, que merece de nossa parte um meditar demorado. Não há como responder a isso, mas fazer como aconselha Rilke em suas "Cartas a um jovem poeta". Há que ruminar, primeiro, as perguntas, em profundidade, de forma que elas possam viver em nós. E talvez, quem sabe, mais distante, conseguiremos encontrar uma resposta plausível[15]. Trata-se de algo que envolve um caminho da vida interior, que requer paciência.

Rilke diz ainda que o amor é, radicalmente, "solidão"[16]. E ele tem razão. Diz ele que o amor não é antes de tudo o entregar-se, o confundir-se com outra pessoa. Isso não é possível. O amor é, melhor, uma ocasião bonita para o amadurecimento pessoal. Os amantes, como todos em geral, estão inseridos num mundo que é limitado, frágil, vulnerável. Trata-se, como diz Rilke na segunda elegia de Duíno, de um universo de contingência:

"E aqueles que são belos, oh, quem os deteria? A aparência transita sem descanso em seu rosto e se dissipa. Tal o orvalho da manhã e o calor do alimento, o que é nosso flutua e desaparece"[17].

Rilke desvela, com pasma lucidez os traços da temporalidade “que corrói todos os  esforços humanos de realização e plenitude ontológicas”[18]. Nada escapa à dinâmica do tempo, nem os impulsos do coração, os estases e a beleza. A verdade mais dura é a de que "nós passamos", e as árvores permanecem.

Pobres amantes, diz Rilke. São marcados por uma sede insaciável, são movidos pelo movimento irrefreado do gozo, que, também é contingente. Nessa busca do ápice do prazer, lembra Rilke, chega um momento em que um dos dois diz: basta! Os amantes não dão conta de um gozo abissal, e retornam à realidade cotidiana. É impossível estar diante do mundo aberto e transparente. Não há como se "dissolver" no mundo do outro. Os místicos mesmo tentaram isso, sem sucesso. Mesmo os mais ousados, como os sufis, perceberam a impossibilidade do passo unitivo. Quando o amante pousa seu lábio no outro, buscando o vinho mais límpido, acaba retornando,  sem sucesso, pois não é possível reter uma "duração pura". Nenhum amplexo é capaz de oferecer eternidade[19].



[1] Carlos Drummond de Andrade. Poesia 1930-1962. Edição crítica. São Paulo: Cosac & Naify, 2012, p. 188 (Não se mate).

[2] Nizami. Layla & Majnun. A clássica história de amor da literatura persa. Rio de Janeiro: Zahar, 2002, p. 162.

[3] Carlos Drummond de Andrade. Poesia 1930-1962, p. 832.

[4] Davi Arrigucci Jr. Coração partido. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.

[5] Ibidem, p. 112.

[6] Lya Luft. Mar de dentro. 3 ed. São Paulo: ARX, 2002, p. 30.

[7] Na raiz mesma da palavra hospitalidade encontra-se outra: hostilidade.

[8] Alain Montandon (Ed.) O livro da hospitalidade. A acolhida do estrangeiro na história e nas culturas. São Paulo: Editora Senac, 2011, p. 32 (Prefácio de Montandon).

[9] Carlos Drummond de Andrade. Poesia 1930-1962, p. 356 (A rosa do povo)

[10] Davi Arrigucci Jr. Coração partido, p. 115.

[11] Ibidem, p. 138.

[12] Ibidem, p. 140.

[13] Ibidem, p. 142.

[14] Ibidem, p. 144.

[15] Rainer Maria Rilke. Cartas a um jovem poeta. 4 ed. São Paulo: Globo, 2013, p. 38.

[16] Ibidem, p. 55.

[17] Rainer Maria Rilke. Elegias de Duíno . 6 ed. São Paulo: Globo, 2013, p. 21.

[18] Ibidem, p. 98 (comentário de Dora Ferreira da Silva).

[19] Ibidem, p. 23.

Francisco e o desafio da literatura

 Francisco e o desafio da Literatura

 

Faustino Teixeira

IHU/Paz e Bem

 

O pontificado de Francisco avança para o seu 12º ano, a ser completado em março de 2025. A igreja católica viveu nesse período momentos de uma grande primavera eclesial, com a renovação de ares fundamentais para a sua sintonia com o tempo presente. O seu trabalho pastoral não tem sido fácil, uma vez que vem cerceado por movimentos de resistência profundos, advindos do próprio circuito eclesial católico (POLITI, 2014, p. 176-177). Um dos traços que marcam a personalidade de Francisco é a paciência, que ele associa à santidade. A paciência e a constância são fruto de um aprendizado bebido nas raízes jesuítas e, é claro, na dinâmica do evangelho. 

 

Em sua entrevista com o pe. Spadaro, Francisco fala em discernimento: 

 

“Esse discernimento requer tempo. Muitos, por exemplo, pensam que as mudanças e as reformas podem acontecer em pouco tempo. Eu creio que será sempre necessário tempo para lançar as bases de uma mudança verdadeira e eficaz. E este é o tempo do discernimento. E por vezes o discernimento, por seu lado, estimula a fazer depressa aquilo que inicialmente se pensava fazer depois (...). O discernimento realiza-se sempre na presença do Senhor, vendo os sinais, escutando as coisas que acontecem, o sentir das pessoas, especialmente dos pobres” (FRANCISCO, 2013, p. 11).

 

Em suas Cartas a um jovem poeta, Rainer Maria Rilke sublinha a importância fundamental da paciência. Ele diz, com ênfase, que “a paciência é tudo”. Trata-se de um ingrediente essencial no desenvolvimento da vida interior. Os grandes e decisivos processos de caminho pessoal devem ser conduzidos com discernimento específico, devagar e sem pressa. É com o devido tempo que conseguimos alcançar uma nova compreensão e fazer com que ela possa habitar tranquilamente nos outros que nos rodeiam (RILKE, 2013, p. 33 e 38).

 

Francisco sabe muito bem que as mudanças na igreja requerem tempo. Como ele disse em longa entrevista ao padre Antonio Spadaro, em 2013, as mudanças que se pretendem verdadeiras e eficazes não ocorrem da noite para o dia, mas envolvem todo um processo de discernimento. As decisões fundamentais na vida eclesial, assevera Francisco, não podem ocorrer de modo repentino. (FRANCISCO, 2013, p. 11 e 17).

 

Em tempos recentes, Francisco tem levantado uma questão fundamental para a dinâmica de formação daqueles que buscam sua inserção do sacerdócio da igreja: a questão da importância da literatura. Trata-se de um desafio que não se restringe aos candidatos ao ministério, mas que se dirige a todos os agentes de pastoral e aos cristãos em geral. O tema apareceu na carta de Francisco sobre o papel da literatura na educação, publicada em 17 de julho de 2024[1].

 

Um de nossos maiores especialistas em literatura no Brasil, o professor Antonio Candido (1918-2017), deixou expressa num singular vídeo, a sua posição sobre o lugar da literatura da vida de cada um de nós. Dizia que a literatura tem um papel fundamental na melhora do ser humano. Para ele, todos aqueles que passaram pelo crivo da literatura viveram, certamente, um grande enriquecimento pessoal. Daí ser fundamental, a seu ver, a abertura de espaços garantidos na sociedade para o acesso livre à literatura[2].

 

Francisco vem demonstrando em seu pontificado uma grande sensibilidade aos temas humanos, e busca acercar-se de colaboradores que manifestam semelhante sintonia, como é o caso do “cardeal poeta”, José Tolentino de Mendonça (1965 -), que atua hoje como Prefeito do Dicastério para a Cultura e Educação, cargo que assumiu em 2022. 

 

Em entrevista publicada no IHU-Notícias, de 28 de agosto de 2024, José Tolentino pontuou que ele foi escolhido por Francisco porque a poesia faz parte de sua biografia, e sua atuação no Vaticano tem como objetivo trazer para a vida da igreja esse “inútil que perfuma a vida”[3]. E assim tem sido sua atuação em Roma, com influxos vivos na reflexão de Francisco. Mais recentemente, Francisco escolheu para o cargo de cardeal outra grande figura humana, de grande sensibilidade literária, que é o dominicano Timothy Radclife (1945 -), que exerceu o cargo de Mestre Geral da Ordem dos Dominicanos, com várias publicações no campo da espiritualidade e dos desafios da vida contemporânea.

 

Em sua carta sobre o papel da literatura na educação, Francisco lamenta a carência literária dos seminaristas, sacerdotes e agentes de pastoral que atuam na vida eclesial. Reconhece ser esse um dos limites da formação recebida, que carece de um lugar destacado para a literatura. Sublinha Francisco, que 

“é preciso constatar, com pesar, a falta de um lugar adequado da literatura na formação daqueles que se destinam ao ministério ordenado. Efetivamente, esta é, muitas vezes considerada como uma forma de passatempo, ou seja, como uma expressão menor de cultura que não faria parte do caminho de preparação e, portanto, da experiência pastoral concreta dos futuros sacerdotes. Com poucas exceções, a atenção à literatura é considerada como algo não essencial.” (CPLE, 4) 

Essa ideia de que a literatura é um simples “passatempo” para os que estão em processo de formação é algo recorrente entre os responsáveis pelo aprimoramento dos estudantes. Firmou-se o dado de que a literatura é um recurso para as horas livres, como mecanismo de equilíbrio para o ritmo pesado dos estudos durante o dia. Um dos formadores de opinião nesse campo, argumenta que a literatura, a poesia e a música entram como contraponto, no sentido de favorecerem “atitudes tranquilas e repousantes” (LIBÂNIO, 2001, p. 130-131). Daí sua indicação para o horário noturno. Vejo hoje, com clareza, que esse não é melhor caminho de entendimento, já que a literatura não é algo a ser recorrido como um passatempo.

A este respeito, gostaria de afirmar que tal perspectiva não é boa. Ela está na origem de uma forma de grave empobrecimento intelectual e espiritual dos futuros sacerdotes, que ficam assim privados de um acesso privilegiado, precisamente através da literatura, ao coração da cultura humana e, mais especificamente, ao coração do ser humano.

De fato, podemos verificar que em muitos institutos de formação, a carência das humanidades é um dado incontestável, e isto aparece na própria estruturação dos currículos de teologia. Percebe-se nos seminaristas uma preocupação nodal com o desfecho da formação recebida para que logo possam exercer o seu trabalho paroquial, com as benesses que o acompanham. Nota-se por todo canto um desinteresse notório pela formação mais vasta e de ampliação do olhar. 

 

Francisco chama a atenção para traços de superficialidade no tempo utilizado nos seminários, e a presença nociva de certos recursos da internet e das redes sociais, que consomem o tempo vago dos candidatos ao sacerdócio. Fala ainda do perigoso circuito da veleidade e das fake News, que roubam um tempo precioso, que poderia ser sorvido com momentos serenos de leitura e aperfeiçoamento pessoal.

 

O papa lança, assim, um apelo capital em favor de uma mudança radical de perspectiva, no sentido de dedicar uma atenção especial à formação literária. Sua proposta vai no sentido de ampliar o olhar e a consciência. Como indica Francisco, a literatura é uma preciosa porta de entrada para o conhecimento de si, para a sensibilização pessoal, e também para o diálogo com o tempo. E justifica:

 

“Para um crente que deseja sinceramente entrar em diálogo com a cultura do seu tempo ou, simplesmente, com a vida de pessoas concretas, a literatura torna-se indispensável. Com grande razão, o Concílio Vaticano II afirma que ´a literatura e as artes […] procuram dar expressão à natureza do homem» e «dar a conhecer as suas misérias e alegrias, necessidades e energias` . Na verdade, a literatura inspira-se na cotidianidade vivida, suas paixões e acontecimentos reais, como ´a ação, o trabalho, o amor, a morte e todas as pobres coisas que enchem a vida`” (CPLE, 8).

 

O contato direto com a literatura, lembra Francisco, é algo essencial. O exercício cotidiano da leitura, da reflexão demorada e atenta, do mergulho efetivo no texto, são recursos fundamentais para o aperfeiçoamento pessoal, assim como um antídoto contra a “surdez espiritual”. Francisco cita o exemplo precioso de Jorge Luis Borges com seus conselhos a respeito. A literatura entra como ingrediente essencial para a tessitura do mundo pessoal. Com base em Proust, Francisco nos lembra que

 

“Os romances desencadeiam ´em nós, no espaço de uma hora, todas as alegrias e desgraças possíveis que, durante a vida, levaríamos anos inteiros a conhecer minimamente; e, dessas, as mais intensas nunca nos seriam reveladas, porque a lentidão com que ocorrem nos impede de as perceber” (CPLE, 18).

 

A obra literária, ressalta Francisco, está sempre em movimento, como algo vivo e fértil, encantando o olhar e abrindo frestas inesgotáveis. É igualmente um forte ingrediente para o trabalho formativo dos sacerdotes e agentes de pastoral, na medida em que enriquece profundamente o repertório narrativo desses formadores de opinião, bem como o vocabulário e a vida intelectual. Francisco nos lembra que

 

“de um ponto de vista pragmático, muitos cientistas afirmam que o hábito de ler produz muitos efeitos positivos na vida de uma pessoa: ajuda-a a adquirir um vocabulário mais vasto e, consequentemente, a desenvolver vários aspectos da sua inteligência; estimula também a imaginação e a criatividade; simultaneamente, permite que as pessoas aprendam a exprimir as suas narrativas de uma forma mais rica; melhora também a capacidade de concentração, reduz os níveis de déficit cognitivo e acalma o stress e a ansiedade” (CPLE, 16).

 

Chamo aqui a atenção para esse dado levantado por Francisco, de que o hábito da leitura é um forte instrumento para ajudar na expressão das narrativas. O ato de escrever, motivado pela literatura, é fundamental para o sentimento de pertença, como tão bem lembrou Clarice Lispector . É um estímulo poderoso para a renovação pessoal e a experiência integradora do viver cada passo do cotidiano com a intensidade que merece. Clarice, numa de suas crônicas, dizia que o exercício de escrever facultou-lhe o sentimento de pertença a si mesma, um sentimento que potencializa a dinâmica da força pessoal, que se irradia como luz para os outros (LISPECTOR, 2018, p. 115-116). Escrever é uma experiência que salva, diz Clarice. Trata-se de “procurar entender, é procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador” (LISPECTOR, 2018, p. 143-144).

 

Em tempos difíceis como o nosso, de crise civilizacional, a literatura fornece um apoio existencial fundamental. Como diz a jovem poeta portuguesa, Matilde Campilho, a poesia, como a pintura e a música, entram como um forte apoio cognitivo: elas “salvam o minuto”[4], elas reconstituem o tecido fragmentado com as dores do tempo e apontam horizontes alvissareiros. 

 

Em livro publicado em 2024 na Itália, com o singelo título Versi a Dio. Antologia dela poesia religiosa, Francisco colaborou com um texto precioso sobre o dom da poesia (BRULLO; SPADARO; CROCETTI, 2024). É, na verdade, uma carta dirigida por Francisco aos poetas. Ele relata em seu texto que a poesia teve sempre um lugar de destaque em sua vida, que ao longo de seu itinerário pôde apreciar muitos escritores e poetas, dentre os quais Dante e Dostoievski. Reconhece que eles exerceram sobre ele um influxo fundamental, no sentido da compreensão de si mesmo e da abertura das sendas do coração. Foram passos fundamentais também para o seu trabalho pastoral, argumenta com precisão. Os poetas, sublinha Francisco, são pessoas nobres, marcadas por sede insaciável de sentido. São movidos pela incrível capacidade de sonhar e de desenhar mundos alternativos. Daí sua importância nos tempos atuais, de predomínio da perturbação do humano sobre a Terra, os tempos do Antropoceno. Os poetas são dotados de “olhos de vidro”, com os quais podem sonhar um mundo distinto. A poesia, diz Francisco, “não fala da realidade a partir de princípios abstratos, mas o faz em escuta à realidade mesma: o trabalho, o amor, a morte, e todas as pequenas grandes coisas que preenchem a vida”.

 

Referências Bibliográficas

 

BRULLO, David; SPADARO, Antonio; Crocetti, Nicola. Versi a Dio. Antologia dela poesia religiosa. Crocetti, 2024.

FRANCISCO. Entrevista exclusiva do papa Francisco ao pe. Antonio Spadaro. São Paulo: Paulus/Loyola, 2013.

LIBÂNIO, João Batista. Introdução à vida intelectual. São Paulo: Loyola, 2001.

LISPECTOR, Clarice. Todas as crônicas.  Rio de Janeiro: Rocco, 2018.

POLITI, Marco. Francesco tra i lupi. Il segreto di uma rivoluzione. Roma-Bari: Laterza, 2014.

RILKE, Rainer Maria. Cartas a um jovem poeta. 4 ed. São Paulo: Globo, 2013.

Dados sobre as religiões no mundo e no Brasil

 Dados sobre as religiões no mundo e no Brasil

 

Faustino Teixeira

IHU/Paz e Bem

 

Nesse mês de junho foram publicados dados importantes sobre a presença das religiões no mundo e também no Brasil. No dia 09 saíram os dados publicados pelo Pew Research Center´s Forum de Washington D.C sobre as religiões mundiais. Trata-se de um centro de estudos ou “laboratório de ideias” voltado para transmitir informações e dados que traduzem a realidade do mundo. E no dia 12, aqui no Brasil, saíram os dados preliminares do Censo do IBGE sobre o campo religioso brasileiro. Temos, assim, um panorama interessante sobre a presença das religiões no mundo.

 

Gostaria de começar falando sobre os dados mundiais. Segundo os dados transmitidos pelo Pew Forum, relativos à presença religiosa no mundo em 2020, o cristianismo continua sendo o grupo mais numeroso do mundo, com 2.3 bilhões de adeptos, seguido pelos muçulmanos, com 2.0 bilhões. Na sequência aparecem os não-afiliados (1.9 bilhão), os hindus (1.2 bilhão) e os budistas (0.3 bilhão). Os judeus aparecem com percentagem bem menor, com 0.01 bilhão. 

 

Se comparamos os dados divulgados pelo mesmo Pew Forum em 2010, percebemos que o maior crescimento na década se deu com os muçulmanos, que ganharam 346.8 milhões de adeptos no decênio. Em seguida vieram os não-afiliados, com crescimento de 270.1 milhões, os hindus, com 126.3 milhões e os cristãos, com 121.6 milhões. 

 

O que se nota é que os muçulmanos constituem o grupo religioso mundial em maior expansão. Já ultrapassaram os católicos, e agora vão se aproximando dos cristãos. Os muçulmanos somam hoje 25.6% da população mundial, enquanto os cristãos somam 28.8%. Em 2010, a diferença era maior: os cristãos com 30.6% e os muçulmanos com 23.29%. A aproximação agora é bem evidente. Chama também a atenção a presença crescente dos não-afiliados, que poderíamos identificar com os “sem religião”. Eles traduzem hoje uma presença singular de 24.2% da população mundial.

 

Os cristãos tem sua presença mais viva na América Latina e no Caribe,  seguido de perto pela Europa. Por sua vez, os muçulmanos tem maior presença na Ásia-Pacífico, vindo em seguida o Médio Oriente e Norte da África, bem como a África SubSaariana. Os não afiliados tem sua maior incidência na Ásia-Pacífico, onde estão congregados em número bem superior ao presente na Europa, América do Norte e América Latina e Caribe, que aparecem na sequência.

 

Os países com maior número de muçulmanos são a Indonésia, Paquistão, Índia, Bangladesh e Nigéria. Quanto aos cristãos, os países com maior incidência são Estados Unidos, Brasil, México, Filipinas e Rússia, progressivamente. Os não-afiliados estão mais presentes na China, com número bem expressivo, vindo na sequência os Estados Unidos, Japão, Vietnam, Alemanha, Rússia, Brasil e França. Os hindus estão mais presentes na Índia, com presença mais moderada no Nepal, Bangladesh, Paquistão e Indonésia. Por sua vez, os budistas marcam maior presença na Tailândia, China, Miamar, Japão e Vietnã. Os judeus têm uma presença bem menor em âmbito mundial, estando mais presentes em Israel, Estados Unidos, França e Canadá. 

 

Em obra clássica de 2001, o sociólogo Peter Berger já havia sublinhado a pungência do dado religioso no mundo, não havendo indícios de um futuro menos marcado por essa presença. Acentuava na ocasião a força substantiva dos muçulmanos e a emergência singular do evangelismo pentecostal[1]. Por sua vez, a socióloga francesa, Danièle Hervieu-Léger, em livro onde abordou o fenômeno da religião em movimento, sublinhou a presença crescente dos religiosos “peregrinos”, que se contrapõem aos praticantes. Sublinhava que essa figura do peregrino era a que melhor expressava a mobilidade que permeava “a modernidade religiosa construída a partir de experiências pessoais”[2].

 

Nos dados preliminares apresentados pelo IBGE no Censo de 2022[3], podemos constatar essa importante presença dos não-afiliados ou “sem religião” aqui no Brasil. Na verdade, esse segmento de pessoas não são necessariamente ateus ou agnósticos. Como mostrou com clareza o Censo de 2010, os ateus e agnósticos constituíam uma fatia bem pouco expressiva entre os sem religião, que em sua maioria são pessoas que se desencaixaram de seus antigos laços e encontram-se em processo de “redefinição de identidade”. Encaixam-se, assim, perfeitamente na categoria de “peregrinos”, como indicou Hervieu-Léger. Entre os sem religião estão aqueles que se desvincularam de uma religião tradicional e afirmam sua crença com base em arranjos pessoais[4]. São “peregrinos” na medida em que circulam por várias instâncias definidoras de sentido, vivendo em trânsito religioso. Não são necessariamente ateus ou agnósticos, mas pessoas que partilham de uma “espiritualidade” peculiar, sem vinculação específica.

 

Uma primeira leitura dos dados preliminares do Censo foi apresentado pelo Instituto de Estudos da Religião (ISER), em junho de 2025[5]. Reagindo ao título do documento do ISER, penso que seria equivocado imaginar um Brasil mais plural, a partir dos dados preliminares coletados pelo IBGE no Censo de 2022. Acho mais correto falar em processo de pluralização, pois ainda temos um Brasil profundamente cristão, com 83,6% de declarantes, sendo 56,7% de católicos e 26.9% de evangélicos no país. Não há, assim um pluralismo propriamente dito. Continua ainda válida a provocação feita por Antonio Flávio Pierucci em artigo de 2010, quando já levantava essa questão[6]. E temos ainda uma presença substantiva de sem religião, que ocupam o terceiro lugar dentre os declarantes, na sequência dos católicos e evangélicos. As outras tradições religiosas continuam encolhidas em 4 % de declaração de crença, o que é um número bem reduzido. 

 

Como novidades trazidas pelo Censo de 2022, podemos apontar uma queda menos acentuada do catolicismo, se compararmos com o decréscimo ocorrido em décadas anteriores. O catolicismo continua em queda, agora de 7.9 pontos percentuais com relação ao Censo anterior. Os católicos eram 73,8% de declarantes em 2000 e 64,6% em 2010. Agora são 56,7%.

 

Não é simples a explicação para essa situação do catolicismo, que, de alguma forma freou um pouco a queda progressiva das últimas quedas. O ritmo de decrescimento é agora um pouco menor. Pode ser que fatores como a presença de papa Francisco nessa última década, com todo o simbolismo que carregou, sua simpatia e abertura, tenha ajudado nessa contenção, assim como sua visita ao Brasil, em julho de 2013, coincidindo com a XXVIII Jornada Mundial da Juventude. É algo que se pode aventar. Em âmbito nacional, o que sempre barrou o avanço pentecostal foi a “persistência da teia de símbolos e valores católicos tradicionais na cultura do campesinato local”, com lembrou Carlos Rodrigues Brandão em trabalho sobre crença e identidade no campo religioso[7]. Daí a forte presença do catolicismo no Nordeste brasileiro.

 

De acordo com o Censo de 2022, o catolicismo liderou em todas as grandes regiões do Brasil, com presença destacada no Nordeste (63,9%) e no Sul (62,4%). A maior presença de católicos ocorreu no estado do Piauí, com 77,4% de declarantes. Foram também maioria em todos os grupos de idade, mas os dados revelaram que há um aumento de católicos entre os núcleos com mais de 80 anos, chegando a 72% na faixa etária de 80 anos ou mais. Na faixa de 10 a 14 anos o índice de católicos diminui, com 52% de declarantes. Isso significa que a presença de católicos na adolescência e início da idade adulta é bem menor da que aparece entre os evangélicos, que dominam nessa faixa etária. Os dados indicam, assim, que há uma tendência de enfraquecimento da socialização primária do catolicismo, indicando a possibilidade de uma crise maior mais à frente.

 

Com respeito aos evangélicos, o Censo de 2022 indicou que um em cada quatro brasileiros definem-se como evangélicos, sobretudo pentecostais. Nos dados preliminares apresentados pelo Censo atual não consta ainda a diferença de proporcionalidade entre evangélicos de missão e pentecostais. O Censo de 2010 indicava que os evangélicos de missão tinham presença mais tímida, na faixa de 4%, enquanto os pentecostais angariavam 13,3%. Imagino que no Censo de 2022 os índices permaneçam semelhantes, com um pequeno aumento dos pentecostais. Há que aguardar os dados mais detalhados, previstos para possível divulgação no segundo semestre de 2025. Isto vale igualmente para uma melhor determinação da presença das outras tradições religiosas no Brasil, como o islamismo, o budismo, o hinduísmo etc.

 

O crescimento dos evangélicos foi menor do que estava sendo anunciado por pesquisadores ou meios de comunicação, que chegavam a prever a superação dos católicos em meados de 2030. Foi o caso do pesquisador José Eustáquio Alves, que agora ajeitou esta previsão para 2050.

 

O evangélicos tem sua maior presença no Norte (36,8%) e Centro-Oeste (31,4%), com concentração na fronteira agrícola e mineral do país, bem como nas favelas e municípios de regiões metropolitanas. A maior proporção de evangélicos foi detectada no Acre (44,4%), e a menor no Piauí (15,6%). Em algumas cidades, os evangélicos já ultrapassaram os católicos, como em Rio Branco (AC), Duque de Caxias (RJ), Nilópolis (RJ) e Búzios (RJ). 

 

Embora os dados preliminares não tenham discriminado a divisão interna do mundo evangélico, já podemos verificar, desde o Censo anterior a presença crescente dos “evangélicos sem vínculos”. O que era comum no mundo católico, envolvendo os católicos não praticantes, agora vislumbramos também no mundo evangélico, como apontou a pesquisa recente do ISER: “Há um sem número de formas de viver uma religiosidade evangélica sem necessariamente estar vinculado a uma igreja denominacional”. O que os pesquisadores têm evidenciado nos últimos anos, é uma fragmentação no campo evangélico, sendo esse campo menos “monolítico”, com novas gamas de participação ou formas de vivência da religiosidade evangélica: “igrejas autônomas, células independentes, ministérios desigrejados, influenciadores religiosos, grupos de oração no whatsap”[8].

 

Outro detalhe importante, é a presença dos evangélicos entre os mais jovens. Enquanto os católicos estão mais presentes entre os mais velhos, os evangélicos têm um perfil mais jovem, sendo a maior proporção entre aqueles que têm de 10 a 14 anos (31.6%), diminuindo com o avançar da idade: 19% entre aqueles que tem 80 ou mais anos. Esse perfil jovem também se verifica entre os sem religião.

 

Levando em conta a distribuição por raça ou cor, os evangélicos tem sua maioria de declarantes de cor ou raça preta ou parda. Como mostrou com pertinência Reginaldo Prandi, as religiões afro-brasileiras “vão cada vez mais incorporando o branco em suas fileiras”, enquanto “os negros engrossam cada vez mais as fileiras das religiões não-negras, das quais algumas mais agressivas modelam sua identidade mostrando-se numa guerra santa contra a religiosidade um dia trazida da África”[9]. Outro dado interessante é a constatação da forte presença evangélica entre a declaração de crença feita por pessoas das tradições indígenas (32,2%).

 

Cresce também no Brasil, assim como indicou o Censo de 2010, a presença dos sem religião. A proporção de pessoas que se declaram sem religião aumentou em 1.3 pontos percentuais entre os anos de 2010 e 2022, passando de 7,9% para 9,3%. Ou seja, quase 10% da população brasileira define-se hoje como sem religião. São índices que se aproximam de outros países da América Latina, como México (10,6%), Argentina (9,2%) e Equador (8,4%). A proporção aumenta em países como Uruguai (52,4) e Chile (30,3%).

 

Há uma maior presença dos sem religião na região Sudeste (10,6%), e a menor presença na região Sul (7,1%). Dentre os declarantes sem religião a maioria são homens (56,2%), e a faixa etária mais contemplada é a dos jovens (na adolescência e início da idade adulta). Na avaliação feita por Regina Novaes em reunião do ISER, no mês de junho, dentre os sem religião estão aqueles que enfatizam uma “religiosidade do eu”, ou seja, aqueles que buscam uma síntese pessoal recorrendo a aprendizados feitos em sua peregrinação espiritual. Não há, porém, fixação numa denominação religiosa específica. A preocupação maior é com a experimentação, evidenciando um contínuo trânsito religioso. Esses “peregrinos” estão sempre em busca de um “porto seguro”. Ainda seguindo a reflexão de Regina Novaes, ela não acredita que esse grupo venha a ser maioria no Brasil, uma vez que as religiões instituídas continuam sendo um expressivo dossel sagrado, fornecedoras de significado para os tempos de intempérie.

 

Em livro que organizei junto com Renata Menezes, sobre o Censo de 2010, há uma reflexão precisa do antropólogo Pierre Sanchis sobre o tempo atual. Ele dizia no prefácio da obra que o que está em curso é uma desinstitucionalização crescente das religiões: “As estruturas sólidas que fundavam, enquadravam, regulavam o universo das experiências religiosas, conferindo-lhes distinção, identidade e conteúdo, não o fazem mais com o mesmo rigor, e até quando se reafirmam com renovado vigor, não o fazem com a mesma abrangência”. Isso inclusive complexifica a noção de “pertença” religiosa, sendo uma questão para os pesquisadores do futuro. Segundo Sanchis, dentre os desafios a serem enfrentados proximamente pelas instituições religiosas está o “significado menos totalizante para a relação identitária que seus fiéis manterão com elas”[10].

 

O Censo de 2022 apontou também para a diminuição da declaração de crença espírita no Brasil, que decaiu 0.4 pontos percentuais. A religião espírita hoje no Brasil envolve 1,8% de declarantes, estando sua maioria presente na região Sudeste. No Censo de 2010 os espíritas declarantes eram 1,3%, e no Censo de 2000 eram 2,2%. Constituem o grupo com os melhores níveis de instrução, com o percentual de 48,0% de pessoas com nível superior completo, sendo sua maioria de brancos (63,8%) e pardos (26,3%). 

 

Com respeito às tradições afro-brasileiras (umbanda e candomblé), houve um crescimento expressivo, com um aumento de 233% com respeito ao Censo de 2010. Naquela ocasião, a presença afro era de 0,3% dos declarantes, com um decréscimo da umbanda e um pequeno aumento do candomblé, em comparação com o Censo de 2000. Mas no geral, o que tinha ocorrido em 2010 era um declínio dessas tradições[11]. Agora, o quadro se transforma, com o aumento da declaração de crença afro-brasileira, que alcança 1.0%. Pode-se atribuir tal crescimento a todo um movimento de afirmação e valorização do debate racial no Brasil.

 

Dentre os declarantes das religiões afro-brasileiras, há uma significativa presença de brancos (42,7%) e pardos (26,3%). Destacam-se também pela pequena taxa de analfabetismo, vindo logo depois dos espíritas, que são os mais instruídos dos declarantes religiosos no Brasil

 

Nas reflexões apresentadas pelo grupo do ISER, após a divulgação dos dados do Censo de 2022, há uma consideração importante a respeito da presença evangélica no campo cultural brasileiro. Não se pode fixar unicamente nos dados do Censo para compreender o impacto e presença dos evangélicos no Brasil. Há também que considerar “a forte e crescente presença na política partidária, na cultura, na sociabilidade e em pautas sociais com muita visibilidade midiática”. Ou seja, há uma presença na cena pública, que escapa à contabilidade expressa no Censo. Isso também vale para o mundo afro-brasileiro, cuja presença na cultura é bem expressiva, como podemos detectar nas canções, nas novelas, no carnaval e tantos outros eventos do mundo cultural. Como sublinhou com acerto a pesquisadora Magali Cunha, em artigo publicado na Carta Capital[12], “o resultado do Censo mostra que não basta projetar crescimento linear com base em números. É preciso considerar as construções culturais, dinâmicas internas, divisões e a relação com a política”. Ela sublinhou que os números são importantes, mas eles “não falam sozinhos”. Estou plenamente de acordo. Para a compreensão do campo religioso brasileiro, os dados são fundamentais, mas devem ser complementados por pesquisas qualitativas, como dissertações e teses, bem como trabalhos de campo específicos, que possam enriquecer os dados com uma visão mais ajustada da realidade em análise.

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https://www.estadao.com.br/politica/municipios-evangelicos-catolicos-lula-jair-bolsonaro-eleicoes/

 

https://www.estadao.com.br/brasil/mapa-da-fe-quais-as-principais-religioes-dos-brasileiros-segundo-ibge/

 

https://fpabramo.org.br/focusbrasil/2025/06/17/pra-nao-dizer-que-nao-falei-dos-numeros-os-evangelicos-e-o-censo-de-2022-por-alexandre-brasil/?fbclid=IwY2xjawLEsBpleHRuA2FlbQIxMQBicmlkETFCTDBMdjV2czRPUHJ5SElYAR4qloper1RyFqX3G_QWBnjU6BIdmlK4dt89U8KuJBgBHhS7d5dVSfuRwLzFbw_aem_fyO6NqPSoYLZODN8S7MLwg

 

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Faustino Teixeira <dutiguera@gmail.com>

06:50 (há 0 minuto)

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para mim

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CENSO RELIGIOSO 2022: RESULTADO FRUSTRANTE QUE BEIRA À INUTILIDADE
O resultado do censo religioso até agora apresentado pelo IBGE é em muitos sentidos frustrante. E não surpreende que tenha demorado tanto a sair.
Ele apresentou os números “graúdos”: católicos apostólicos romanos (56,7%), evangélicos (26,9%), espíritas (1,8%), umbanda e candomblé (1,0%), outras religiosidades (4,2%), sem religião (9,3%).
Algumas conclusões, mais confirmações daquilo que se podia presumir, é possível aferir: a percentagem de católicos diminuiu e a de evangélicos aumentou, em relação ao censo de 2010. Essa tendência era prevista, embora tenha vindo em intensidade menor do que por muitas pessoas projetada, particularmente dentre evangélicos, muitas vezes propensos a fazer projeções “espetaculares”. Observe-se também que a proporção de católicos entre as pessoas com mais de 80 anos ainda é de 72,0%, entre 10 e 14 anos apenas 52%. Assim, pode-se concluir, com razoável perspectiva de acerto, que essa tendência de diminuição de católicos e aumento de evangélicos se dá mais por razões demográficas do que por razões devidas às respectivas pregações ou práticas religiosas. E assim provavelmente há de seguir nos próximos anos.
Deste modo, o mundo evangélico há de se perguntar por que razão, apesar do seu aumento em termos absolutos, suas pregações e práticas religiosas estejam perdendo atratividade. Pode-se especular que isso se deva tanto pela exorbitante multiplicidade de sua “oferta”, não raro discrepante entre suas variantes, quanto por verdadeiros escândalos e opções de cunho mais político do que propriamente religioso efetuadas por suas lideranças mais conhecidas.
Alguns problemas recorrentes nos censos demográficos consistem em sua incapacidade de detectar diferenças significativas ocultas nos agrupamentos efetuados. “Sem religião”, por exemplo, não significa necessariamente que quem assim se declara (9,3%) seja desinteressado em religião ou mesmo não praticante, mas apenas que não se reconhece como aderente a qualquer religião estabelecida. O conceito “sem religião”, portanto, inclui tanto quem seja ateu ou agnóstico quanto quem crê em Deus e eventualmente até participa de alguma atividade religiosa. Ainda assim, é um grupo que cresceu, particularmente nos grandes centros, e provavelmente seguirá crescendo. Pode-se concluir, contudo, que o povo brasileiro segue sendo intensamente religioso.
Este censo, como também os anteriores, foi igualmente incapaz de detectar a dupla aderência de parcela significativa da população brasileira. Assim, pode-se colocar em dúvida o dado de que apenas 1% da população pertença ao grupo “umbanda e candomblé” e particularmente de que as pessoas que assim se declarem sejam em maior número no Sul (1,6%). É notório haver significativo número de pessoas dentre aquelas que praticam uma religião com raízes africanas, também serem batizadas cristãs, particularmente católicas, e também levem seus filhos e filhas à pia batismal numa igreja cristã. Igual observação pode ser feita em relação às pessoas espíritas, que seriam 1,8% da população.
Ainda assim, a maior deficiência do censo religioso está relacionada com a categoria “evangélicos”. Os dados, pelo menos os até agora divulgados, são praticamente inaproveitáveis para entender o universo abarcado pela designação “evangélicos”. O censo de 2010 já havia apresentado sérias deficiências nesse tocante, o que eu apresentei em artigo publicado na época. (Censo IBGE 2010 e religião. Horizontes, v. 10, n. 28: 1122-9 (out./dez. 2012). ISSN 2175-5841 [disponível em http://periodicos.pucminas.br/index.php/horizonte/article/view/P.2175-5841.2012v10n28p1122/4444]) Aquele censo tinha, por exemplo, uma relação de 49 designações diferentes para luteranos, mas tinha sido incapaz de listar entre todas elas a IECLB, igreja de “confissão luterana”, que abarca a grosso modo dois terços das pessoas que se declaram luteranas no país.
Agora, porém, muito pior. Por este censo, pelo menos pelo que foi divulgado até o momento, não se tem qualquer ideia de como está configurado o mundo evangélico. Tem havido informação, não se sabe se confiável, de que teria havido um “erro” na coleta dos dados. O que se sabe, sim, é que no governo Bolsonaro, que em verdade nem queria fazer o censo, mas foi obrigado a fazê-lo por decisão judicial, houve uma sensível redução de fundos alocados para o censo e sensível diminuição no treinamento dos recenseadores. Isso pode ter afetado gravemente os dados relativos às religiões.
Ora, é mais do que sabido que o grupo “evangélicos” é enormemente heterogêneo. São significativas não apenas as diferenças entre pentecostalismo histórico, neopentecostalismo e as numerosas igrejas pentecostais autônomas. Quem cresceu e quanto? Quem estagnou ou eventualmente até decresceu? Mas como fica o protestantismo histórico? Quantos são os presbiterianos, os luteranos, os metodistas, os batistas etc.? Os ortodoxos, que têm muito mais afinidade com os católicos, também foram classificados entre os evangélicos? Semelhantemente, os anglicanos, também designados de episcopais? Não ficamos sabendo nada. Muito menos em relação aos adventistas do sétimo dia, às testemunhas de Jeová e, ainda, aos santos dos últimos dias (mórmons). Sem esses dados, impossível sequer avaliar adequadamente as denominações pentecostais majoritárias.
Sem dados mais pormenorizados, o censo religioso de 2022 beira à inutilidade, pois os resultados graúdos apresentados eram mais ou menos previsíveis. Eles apenas confirmam o que, em termos gerais, quem acompanha o universo religioso mais ou menos já podia presumir.

...

 

Pedro

Faustino Teixeira <dutiguera@gmail.com>

06:53 (há 0 minuto)

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para mim

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Dudu, saiu de moda mas não perdeu validade o conceito de "desafeição religiosa", que foi muito usado nos anos 1950-70. Acho que ele é muito mais útil do que "secularização" (que só vale pra referir-se à perda de poder político da religião") pra explicar o afastamento de fiéis em relação à sua Igreja. O problema é que ele só foi trabalhado pra Igreja católica, e não vale pra outros sistemas religiosos. Mas ele fala da perda de afeto em 3 sentidos: ligação afetiva propriamente dita, que a pessoa tem com a sua Igreja; ligação prática, que é a pessoa levar a sério o que a Igreja manda; e ligação ritual, que é a pessoa afastar-se dos ritos da sua Igreja. Trabalhar a perda de fiéis por esse viés me parece mais útil do que falar em "crise de fé" (porque é crise religiosa, não de fé). Mas isso é coisa do século passado...

 

Pedrob

 

Gente, escrevi correndo e vejo com alegria que deu certo. Pra quem tem meu livro "Convite à Sociologia da Religião", trabalho isso no cap. 11, especialmente p. 192 em diante. Mas o texto mais completo está no artigo que vai em anexo, pra quem se interessar pelo tema. Abraços e grato pela boa avaliação!

 

https://www.ihu.unisinos.br/653585-cresce-a-pluralidade-religiosa-nas-capitais-brasileiras-entre-1991-e-2022-artigo-de-jose-eustaquio-diniz-alves

 



[1] Peter L. Berger (Ed.). Le réenchantement du monde. Paris: Bayard, 2001, p. 21-24.

[2] Danièle Hervieu-Léger. O peregrino e o convertido. A religião em movimento. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 87.

[4] Faustino Teixeira & Renata Menezes (Orgs). Religiões em Movimento. O Censo de 2010. Petrópolis: Vozes, 2013, p. 26-28.

[5]Um Brasil mais plural: um primeiro olhar sobre os dados de Religião do Censo 2022 – 06/06/2025: https://iser.org.br/noticia/um-brasil-mais-plural-um-primeiro-olhar-sobre-os-dados-de-religiao-do-censo-2022/ (acesso em 16/06/2025).

[6] Antônio Flavio Pierucci. Cadê nossa diversidade religiosa?  Comentários ao texto de Marcelo Camurça. In: Faustino Teixeira & Renata Menezes (Orgs). As religiões no Brasil. Continuidades e rupturas. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 49-51.

[7] Carlos Rodrigues Brandão. Crença e identidade. Campo religioso e mudança cultural. In: Pierre Sanchis (Org.). Catolicismo: unidade religiosa e pluralismo cultural. São Paulo: Loyola, 1992, p. 51.

[8] Veja os dados apontada na recente pesquisa do ISER, citado acima.

[9] Reginaldo Prandi. Herdeiras do Axé. São Paulo: Hucitec, 1996, p. 77.

[10] Pierre Sanchis. Prefácio. In: Faustino Teixeira & Renata Menezes (Orgs). Religiões em Movimento, p. 13-14.

[11] Reginaldo Prandi. As religiões afro-brasileiras em ascensão e declínio. In: Faustino Teixeira & Renata Menezes (Orgs). Religiões em Movimento, p.203-218.

[12] Magali Cunha. O que podemos afirmar sobre o número de evangélicos no Censo de 2022: https://www.cartacapital.com.br/blogs/dialogos-da-fe/o-que-ja-podemos-afirmar-sobre-o-numero-de-evangelicos-no-censo-2022/(acesso em 16/06/2024).

 

Mensagem de Pedro Oliveira na página Zap de Emaús – Junho 2025

 

Dudu, saiu de moda mas não perdeu validade o conceito de "desafeição religiosa", que foi muito usado nos anos 1950-70. Acho que ele é muito mais útil do que "secularização" (que só vale pra referir-se à perda de poder político da religião") pra explicar o afastamento de fiéis em relação à sua Igreja. O problema é que ele só foi trabalhado pra Igreja católica, e não vale pra outros sistemas religiosos. Mas ele fala da perda de afeto em 3 sentidos: ligação afetiva propriamente dita, que a pessoa tem com a sua Igreja; ligação prática, que é a pessoa levar a sério o que a Igreja manda; e ligação ritual, que é a pessoa afastar-se dos ritos da sua Igreja. Trabalhar a perda de fiéis por esse viés me parece mais útil do que falar em "crise de fé" (porque é crise religiosa, não de fé). Mas isso é coisa do século passado...

 

Gente, escrevi correndo e vejo com alegria que deu certo. Pra quem tem meu livro "Convite à Sociologia da Religião", trabalho isso no cap. 11, especialmente p. 192 em diante. Mas o texto mais completo está no artigo que vai em anexo, pra quem se interessar pelo tema. Abraços e grato pela boa avaliação!