sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Uma dor do Brasil: o trabalho escravo contemporâneo

Uma dor do Brasil: o trabalho escravo contemporâneo

Faustino Teixeira
PPCIR - UFJF

            É motivo de grande alegria poder estar aqui nesta prestigiosa Academia e falar sobre um tema tão candente. O  meu agradecimento ao acadêmico Domício Proença Filho, que está na coordenação desse seminário, e em particular ao acadêmico e amigo querido, Marco Lucchesi,  que me convidou para estar nessa mesa, junto com Ricardo Rezende, parceiro de caminhada e esperança. O momento é também propício, quando o Cristo Redentor ficou iluminado de Azul, simbolizando a Campanha Nacional contra o Tráfico Humano, lançada nesse 28 de julho de 2014.

            Falar de trabalho escravo no Brasil, ou de trabalho análogo à escravidão, é tocar num tema complexo, que desperta algo sombrio, expressando uma das “dores do Brasil”. Aqui me recordo de ricas reflexões tecidas a respeito pela escritora e psicanalista, Maria Rita Kehl, que também participa da Comissão da Verdade. Ela fala na introdução de um de seus livros, “18 crônicas e mais algumas” (2011), que o “Brasil dói, o Brasil traumatiza”. Se há de um lado tantas riquezas e belezas, diversidade e inter-comunicação, há por outro, traços mais tormentosos e violentos, de um Brasil simultaneamente “cativante e áspero, acolhedor e cruel”.

            Esse tema doloroso, enquanto reflexo de nossas tristes mazelas sociais, traduz em verdade “restos não resolvidos de 350 anos de escravidão”, como vem evidenciando as pesquisas de Luiz Felipe de Alencastro, professor titular da cátedra de História do Brasil na Universidade de Paris-Sorbonne.

Como mostrou Alencastro, “desde a abolição do tráfico negreiro, em 1831, até a abolição da escravatura, mais de 700 mil africanos chegaram ao país. A escravização desses homens e mulheres era ilegal até mesmo para as leis brasileiras da época”, o que ficou ocultado para eles e seus descendentes até 1888 quando terminou a escravidão[1]:

Há que reconhecer o crescimento e afirmação de políticas contra a segregação no Brasil, mas infelizmente a abolição mesmo, de fato, não ganhou status de cidadania, pois ainda vemos, por todo canto, pessoas jogadas nas ruas, sem trabalho, sendo objeto de discriminação e rejeição; bem como pessoas submetidas a trabalhos forçados ou condições degradantes de trabalho, ou ainda objeto de tráfico desumano.

Como assinala Xavier Plassat, o Brasil firma-se como “grande exportador de pessoas, principalmente mulheres, exploradas na prostituição nos países de destinação, particularmente da Europa” [2]

            Em seu discurso na abertura da Feira do Livro de Frankfurt, em 2013, o escritor Luiz Ruffato falou dessa dor de um Brasil que nasceu “sob a égide do genocídio”[3]: do genocídio dos povos originários, que antes somavam quatro milhões e hoje não passam de 900 mil:

O fim da escravidão indígena no Brasil, ocorrida em 1755, não significou efetiva incorporação dessa população nativa à sociedade nacional. E o descaso permanece, como vem acentuando Dom Erwin Kräutler, presidente do CIMI, nas Assembléias da CNBB: o acirramento da prática de violência contra os povos indígenas: entre 2003 e 2010, de acordo com os dados do CIMI, 499 indígenas do Brasil foram assassinados (Assembleia de maio de 2011 – a 49ª); o registro de 463 suicídios de índios Guarani e Kaiowá: “obrigados a viver em acampamentos nas beiras das estradas ou em pequenos espaços retomados no interior das fazendas”. São “vítimas frequentes de ataques promovidos por pistoleiros e fazendeiros. Há casos recorrentes em que a aldeia é incendiada e líderes são assassinados” (Assembléia de maio de 2014 – a 52ª)[4]

O genocídio envolve igualmente os africanos negros, que até meados do século XIX foram aprisionados e levados à força para o nosso país. Os números falam mais forte: nada menos que 4.800.000 africanos foram deportados da África para o Brasil, ou seja 43% do número total, um número bem superior ao dos escravos que foram deportados para os Estados Unidos, em torno de 600 mil.

Um dado curioso, apontado por Luiz Felipe de Alencastro: na cidade do Rio de Janeiro, por volta de 1849, havia 110 mil escravos para uma população de 260 mil habitantes, ou seja, 42%.[5]

            A abolição da escravatura, em 1888, não veio seguida de uma política que assegurasse a afirmação da cidadania aos ex-cativos. Assistimos, assim, mais de um século depois, ao triste espetáculo de uma impressionante desigualdade racial no Brasil.[6] A grande maioria dos afro-descendentes, como assinala Ruffato, “continua confinada à base da pirâmide social”.

            Quando se reconhece hoje no Brasil a vigência de situações que “reduzem alguém a condição análoga à de escravo”, isto deve ser situado dentre desse quadro mais amplo do processo histórico nacional que não conseguiu restringir essa dolorosa diferença ou “dicotomia eu-outro”, que acirra os preconceitos e aciona as violências. O outro, o diferente, passa a ser aquele que nos ameaça. A ele recusamos qualquer interlocução criadora. Como indica Ruffato, “voltamos as costas ao outro – seja ele o imigrante, o pobre, o negro, o indígena, a mulher, o homossexual, como tentativa de nos preservar, esquecendo que assim implodimos a nossa própria condição de existir. Sucumbimos à solidão e ao egoísmo e nos negamos a nós mesmos”.

            Fala-se hoje em “nova escravidão” (Kavin Bales), em escravidão contemporânea[7], tão perversa quanto a anterior, como indica o estudioso Leonardo Sakamoto. Perversa por “roubar do ser humano sua liberdade e dignidade”. No Brasil “ela não se resume à terra de ninguém que é a região de expansão agrícola amazônica, mas está presente nas carvoarias do cerrado, nos laranjais e canaviais do interior paulista, em fazendas de frutas e algodão do Nordeste, nas pequenas tecelagens do Brás e Bom Retiro, da cidade de São Paulo”

Muitos deles com expectativa de vida inferior a muitos escravizados dos séculos passados: os carvoeiros, roçadores de pasto ou cortadores de cana do século XXI. E dentre os maiores contingentes desses escravizados modernos encontram-se os afrodescendentes[8].

As modalidades desta escravidão variam, envolvendo servidão por dívida, trabalho em condições degradantes, com direitos sonegados, relação de trabalho originada de fraude ou violência, cerceamento do direito de ir e vir etc. Esses “novos escravos” vivem em situações degradantes, “exilados da vida”, estrangeiros em sua própria terra. Em número estimado pela Comissão Pastoral da Terra, chegam a 40 mil pessoas, presentes em vários estados do Brasil, aliciados em bolsões de pobreza, sobretudo no Norte e Nordeste do país.

            Estudiosos do tema, como Ricardo Resende e Leonardo Sakamoto relatam situações humilhantes vividas por trabalhadores escravizados, seja nos locais de trabalho ou no tratamento recebido pela Polícia Militar quando conseguiam escapar do cerco a que estavam envolvidos[9].

            Mudanças positivas começaram a acontecer no Brasil nas duas últimas décadas, com a criação de mecanismos de fiscalização e combate à escravidão. Deve, porém, ser ressaltado o papel pioneiro de Dom Pedro Casaldáliga, na sua profética Carta Pastoral de 1971 (Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio): o primeiro texto público a abordar o tema e situar a realidade dos trabalhadores submetidos ao trabalho escravo. Posteriormente serão criados o Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado (Gertraf) e o Grupo Móvel de Fiscalização, isso em 1995, com atuação em todo território nacional. Merece também destaque, no governo Lula, a criação da Secretaria Especial de Direitos Humanos, em 2003, com a presença combativa de Nilmário Miranda. Na última década, como indica Ricardo Rezende, “houve um aumento substantivo de operações de fiscalização”. Segundo dados fornecidos pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), “entre 1995 e 2012, foram resgatados 42.439 trabalhadores em diversas regiões do Brasil”.

            As resistências a esse trabalho de combate e fiscalização ainda são persistentes, como no caso das pressões da bancada ruralista. Há muito caminho pela frente. Verifica-se, com tristeza, que “as raízes da escravidão” ainda perduram, com suas dolorosas sequelas. O trabalho escravo contemporâneo não está dizimado, e marca sua presença “nas principais cadeias produtivas do agronegócio brasileiro”, sinalizando uma dura contradição: de coexistência de tecnologia de ponta com formas ilegais de trabalho ou precarização das relações trabalhistas.

Falando sobre a causa indígena em pronunciamento na 52ª Assembleia Geral da CNBB, Dom Erwin Kräutler, presidente do Conselho Indigenista Missionário, mencionou a presença de nuvens sombrias nos céus: com a presença necrófila de “grupos político-econômicos anti-indigenistas ligados aos agronegócios, mineradoras, empreiteiras, com apoio e participação do governo brasileiro” num cerrado trabalho de desconstrução dos direitos territoriais dos povos indígenas.

            Em mensagem enviada por papa Francisco à 103ª Sessão da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em maio de 2014, ele falou desse terrível espectro da escravidão contemporânea: “O tráfico de seres humanos assim como o trabalho forçado e sua redução em escravidão são um horror e uma praga, um crime contra a humanidade”. São exemplos tristes da “globalização da indiferença”, e que bradam aos céus[10].

            A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) dedicou o tema da Campanha da Fraternidade de 2014 ao tráfico humano: “Fraternidade e Tráfico Humano”, captando um tema da atualidade e sublinhando a urgência de uma solução comum para esse grave problema.

O Brasil, infelizmente, ainda assume um posto de liderança mundial nesse âmbito da injustiça social, nesse novo século que começa com “crepúsculo e obscuridade”, como assinalou Eric Hobsbawm em sua auto-biografia[11]. Sublinhou que nosso mundo precisa cada vez mais dos historiadores, sobretudo os céticos, nesses tempos insatisfatórios. E conclui dizendo: “A injustiça social ainda precisa ser denunciada e combatida. O mundo não vai melhorar sozinho”.

E é nossa tarefa, essencial, levantar a voz para fazer valer a cidadania de nossos povos e possibilitar o brilho de nossa gente. Como diz Caetano Veloso:

Gente quer comer
Gente quer ser feliz
Gente quer respirar ar pelo nariz (...)

No coração da mata
Gente quer prosseguir
Quer durar, quer crescer
Gente quer luzir.

Gente é pra brilhar.
Não pra morrer de fome.

(Texto apresentado na Academia Brasileira de Letras, em 31 de julho de 2014, na mesa: Trabalho Escravo no Brasil? – No âmbito do seminário Brasil, Brasis – A coordenação do evento esteve a cargo do acadêmico Domício Proença Filho, e compondo a mesa: o acadêmico Marco Lucchesi e os conferencistas: Ricardo Rezende Figueira e Faustino Teixeira)




Ver também, do mesmo autor:  O trato dos viventes. Formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
[2] In: Christiane V. Nogueira & Marina Novaes & Remato Bignami (Orgs).  Tráfico de pessoas. Reflexões paria a compreensão do trabalho escravo contemporâneo. São Paulo: Paulinas, 2014, p. 79.
[4] Cf. José de Souza Martins. Sim, existe (trabalho escravo – entrevista com José de Souza Martins). Sem Fronteiras, n. 251, junho de 1997, p. 5. E também os depoimentos de Dom Erwin Kräutler:
[6] Veja os dados estatísticos do PNDA (Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio), de 1976, confirmando tal desigualdade racial no Brasil.
[7] No relatório oficial da Organização Internacional do Trabalho, com data de 1993, os dados sobre o trabalho escravo no mundo indicavam a existência de 6 milhões de pessoas nessa condição.
[8] Cf. Christiane Nogueira, Marina Novaes, Renato Bignami e Xavier Plassat. Tráfico de pessoas e trabalho escravo: além da interposição de conceitos. In: In: Christiane V. Nogueira & Marina Novaes & Remato Bignami (Orgs).  Tráfico de pessoas, p. 213.
[9] Ricardo Rezende Figueira. A escravidão contemporânea, o tráfico humano e a Campanha da Fraternidade de 2014. In: Christiane V. Nogueira & Marina Novaes & Remato Bignami (Orgs).  Tráfico de pessoas, p. 114; Leonardo Sakamoto. A “reinvenção” do trabalho escravo no Brasil contemporâneo. In: Christiane V. Nogueira & Marina Novaes & Remato Bignami (Orgs).  Tráfico de pessoas, p. 37.
[11] Eric Hobsbawm. Tempos interessantes. Uma vida no século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 418, 448-449 e 455.