quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Prefácio - Imitação de Cristo

Prefácio – Imitação de Cristo

(Henrique Cristiano José Matos. Imitação de Cristo. Caminhos de crescimento espiritual. Belo Horizonte: O Lutador, 2014)

É com grande alegria que apresento essa edição bilíngue da obra de Tomás de Kempis, Imitação de Cristo, este clássico livro que traduz o cerne da espiritualidade da Devoção Moderna. Outras traduções foram publicadas no Brasil, mas esta tem uma característica peculiar, expressando uma preciosa pesquisa de investigação histórica e de cuidado literário. Com o trabalho realizado por Frater Henrique Cristiano José de Matos, o leitor consegue acessar o conteúdo da obra com a base necessária de compreensão do contexto histórico e da inspiração que moveu esse grande espiritual do século XIV.

Como traço novidadeiro, a partilha de uma rica pesquisa realizada junto ao Instituto de Espiritualidade “Titus Brandsma”, vinculado à Universidade de Nimega (Holanda), e em particular ao trabalho realizado por Frei Rudolf van Dijk, da ordem carmelita, responsável pela mais rica edição bilíngue da Imitação de Cristo, publicada em 2008. É este instituto de pesquisa, fundado pela Província Neerlandesa da Ordem dos Carmelitas da Antiga Observância, que vem realizando nos últimos tempos as mais importantes investigações científicas sobre a Devoção Moderna, trazendo pistas inovadoras para a compreensão da clássica obra de Tomás de Kempis.

            O resultado mais preciso das investigações realizadas, e assumidas nesta edição, é uma nova ordenação dos livros que compõem a Imitação de Cristo. Nas edições tradicionais, a obra finalizava com o livro de exortação à sagrada comunhão, sendo precedido pelo livro sobre a consolação interior. Dava-se, assim, uma importância fundamental à comunhão eucarística, entendida como coroamento do caminho espiritual. Na nova edição há uma mudança de ordem, e de compreensão teológica, favorecendo uma melhor percepção da dimensão mística deste livro tão popular. Com a nova visão, o livro apresenta-se como um manual religioso dividido em quatro etapas: iniciando com a convocação ao abraço da vida espiritual e concluindo com a união deificante proporcionada pelo diálogo intradivino. A nova sequência, na verdade, vem retomar a ordem original do livro, traduzindo uma “surpreendente articulação interna” e uma “progressividade do itinerário espiritual”.

            Em sua preciosa introdução, Frater Henrique desoculta esse traço místico essencial do livro de Thomas Kempis, sublinhando que a meta final do percurso espiritual não é o Cristo, celebrado na Eucaristia, mas o Pai celeste. A Eucaristia acena para um horizonte que é mais amplo e que expressa a íntima união com Deus. Para utilizar uma imagem de João da Cruz, a Eucaristia acena para uma ceia maior, que “deleita e enamora”, o panis angelicum que é o alimento do “próprio Amado”.

            Com a reflexão sugerida, a obra apresentada revela-se como um “guia mistagógico”, indicando uma precisa pedagogia religiosa que privilegia um caminho interior de crescimento espiritual. Em linha de sintonia com a inspiração traçada pela devoção moderna, a Imitação de Cristo sublinha a centralidade da interioridade, mas pontuada pelo seguimento de Jesus. Trata-se de uma “interiorização do espírito de Jesus” e um convite a uma vida cristiforme que se abre ao horizonte maior do Mistério de Deus. Ou como indicou Frater Henrique, a “busca de Deus, seguindo o Cristo, na perspectiva da união definitiva no amor trinitário”.

            É toda uma linha de reflexão que expressa um singular influxo da linhagem mística que começa com Agostinho, e que passa por autores como Jan van Ruusbroec, Mestre Eckhart e outros espirituais vinculados aos Cartuxos e Cisterciences. De modo particular, esse movimento em direção à interioridade, ao lado interior da existência humana (o dedans), como questionamento vivo ao projeto habitual de vinculação quase exclusiva ao mundo da superficialidade (o dehors), que situa o “ego” no centro de todo movimento existencial. Um momento decisivo ocorre quando a pessoa “interiorizada” responde ao desafio de viver o discipulado de Jesus, sem impor resistência à ação da graça. E esse seguimento joga a pessoa no mundo, na experiência agápica essencial. Daí a missionaridade que envolve essa obra prima de Tomás de Kempis, rompendo com esquemas interpretativos que confinam a interpretação do livro numa linha meramente intimista e subjetivista. Como salienta Frater Henrique, “o próprio testemunho da vida de seu autor comprova o contrário, como também a irradiação apostólica da Devoção Moderna, da qual fazia parte”.

            Por fim, vale perguntar sobre as razões que motivam a grande sedução exercida por esse livro desde sua primeira irradiação, com uma popularidade só ultrapassada pela Bíblia. Buscar entender sua “estranha atração” sobre tantas pessoas é algo que motiva muitos de seus intérpretes, entre os quais Frater Henrique. E ele consegue passar para o leitor, de forma admirável, esse toque sedutor. E sua resposta é clara: trata-se de um livro que “fala, antes de tudo, ao coração”, que “toca diretamente ao ser humano: o próprio sentido da existência”. É um livro que fala ao coração dos leigos, e neles sempre encontrou sua mais preciosa ressonância. Talvez o segredo maior dessa atração esteja na capacidade de trazer à tona valores tão esquecidos na cultura atual, pontuada pela lógica da competitividade, da produtividade e da centralidade egoica. Há hoje, por todo lado, uma sede de humanização que encontra eco em livros dessa natureza, que traduzem um caminho alternativo: de “descentramento de si”, de busca da simplicidade, da gratuidade, do despojamento e liberdade interior. E Frater Cristiano conclui sua reflexão com um toque bem latino-americano: “A intimidade com o Senhor inclui, necessariamente, uma decidida solidariedade com os outros, particularmente com os excluídos e todos os que se encontram ´à beira da estrada da vida`”.

Faustino Teixeira
PPCIR-UFJF