sábado, 15 de dezembro de 2012

Análise sócio-fenomenológica do pluralismo religioso no Brasil


Análise sócio-fenomenológica do pluralismo religioso no Brasil[1]

Faustino Teixeira
PPCIR-UFJF

            Um dos grandes desafios que se apresentam às tradições religiosas nesse século XXI é o da abertura e acolhida da diversidade religiosa. As igrejas cristãs são igualmente convocadas a pensar com seriedade nessa imperativa questão. O campo religioso brasileiro vive nas últimas décadas uma experiência inédita de pluralização, como apontado no ultimo Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgado em junho de 2012. O objetivo desse breve ensaio é favorecer um conhecimentos de alguns dos dados mais importantes apontados no censo, visando um aprofundamento e debate.

Apresentação dos dados do Censo 2010

            Em junho de 2012 foram divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) os resultados do Censo 2010 com respeito ao perfil religioso da população brasileira. Uma primeira conclusão que pode ser destacada com a verificação dos dados é o aumento da diversidade religiosa no Brasil, cuja visibilidade é mais destacada “nas áreas mais urbanizadas e populosas do país” (IBGE, 2012, p. 90). Fica cada vez mais difícil e carente de plausibilidade falar de uma “cultura católico-brasileira”. No final do século XIX e início do século XX a situação religiosa no Brasil era bem diferente e se podia falar em hegemonia da religião católica apostólica romana no país. Por volta de 1872 a porcentagem dos declarantes católicos era de 99,7%. Oradores do início do século XX, ao tratar da identidade nacional, falavam com tranquilidade de um Brasil “intrinsecamente católico”. Dizia o pe. Júlio Maria no Livro do Centenário, que “o catolicismo formou a nossa nacionalidade... Um ideal de pátria brasileira sem a fé católica é um absurdo histórico como uma impossibilidade política” (SANCHIS, 1994, p. 35).
            As bases de uma tal convicção foram aos poucos sendo abaladas pelos dados apresentados pelos inúmeros censos demográficos realizados no país. Segundo os dados do IBGE, “em aproximadamente um século, a proporção de católicos na população variou 7,9 pontos percentuais, reduzindo de 99,7%, em 1872, para 91,8% em 1970” (IBGE, 2012, p. 89). Na sequência dos censos os números da declaração católica vão progressivamente decaindo: 89,2% em 1980; 83,3% em 1991; 73,6% em 2000 e 64,6% em 2010. Os analistas sublinham que o catolicismo romano foi o “principal celeiro” de doação de fiéis para outras tradições religiosas ou para os assim denominados “sem religião”. Só na última década a perda de fiéis católicos foi na ordem de 465 adeptos por dia, o equivalente à população da cidade de Curitiba. Os católico-romanos somam hoje no Brasil, segundo os dados do censo, 123,2 milhões de adeptos declarados numa população de 190,7 milhões de habitantes. E em 2000 somavam 124,9 milhões de adeptos, numa população de 170 milhões de habitantes. Conforme os dados apresentados, a mais significativa presença católico-romana encontra-se nas Regiões Nordeste e Sul, e a maior redução relativa de adeptos está situada na Região Norte. Indica-se também que boa parte da representatividade relativa dos católicos foi registrada em domicílios de residentes em áreas rurais, com porcentagem maior de homens. Com base em dados proporcionais, os católicos declarados são também maioria entre os que estão acima dos 40 anos (IBGE, 2012, p. 99).
            Contribuiu para essa mudança na composição religiosa da população brasileira, o crescimento daqueles que se declararam evangélicos. Este específico segmento, que em 1940 representava apenas 2,6% dos declarantes, teve  significativa ampliação nos últimos quarenta anos: 5,8% em 1970; 6,6% em 1980; 9,0% em 1991; 15,4% em 2000 e 22,2% em 2010 (42,2 milhões de fiéis). Só na última década, o aumento em número absoluto de evangélicos foi de 16 milhões de adeptos, uma média de 4.383 fiéis por dia. O traço distintivo nesse crescimento deve-se, sobretudo, à afirmação dos evangélicos pentecostais. Em 2000, do total de evangélicos declarados (15,4%), mais de dois terços (10,43%) eram pentecostais, e em 2010, 13,3% (25,3 milhões). Há que registrar ainda, nos dados do último censo, a presença do grupo de evangélicos não determinados (9,2 milhões), envolvendo a declaração de crença daqueles que não indicaram vinculação institucional ou cuja pertença não pôde ser classificada. O segmento dos evangélicos de missão teve uma ligeira redução proporcional entre os dados dos dois últimos censos: 4,1% em 2000 e 4,0% em 2010, mas em verdade mantém uma estabilidade de participação com respeito ao total da população. O último censo evidencia uma expressiva presença dos evangélicos, e em particular dos pentecostais, nas Regiões Norte e Centro-Oeste, mas firmam-se também nos Estados de São Paulo e Rio de Janeiro, bem como nas áreas metropolitanas da Região Nordeste. Ao contrário do que se verifica no contingente de católicos declarados, há, em termos proporcionais, uma mais forte presença de mulheres entre os evangélicos, e em idade mais jovem, sobretudo entre os pentecostais.
            O censo de 2010 registra também um crescimento de pessoas que se declararam sem religião, embora esse aumento tenha ficado abaixo dos prognósticos. Enquanto esse grupo respondia por 7,4% dos declarantes em 2000, passa hoje a responder por 8,0%, contando com 15 milhões de pessoas. É um segmento que marca presença na Região Sudeste, de modo particular no Estado do Rio de Janeiro, embora se distribua pelas diversas áreas do país.
            Quanto à presença dos espíritas, os dados do censo de 2010 também sinalizam um crescimento. Eles correspondiam a 1,3% da declaração de crença em 2000, passando para 2,0% em 2010. Dentre as Grandes Regiões, sua presença vem destacada na Região Sudeste, e sua menor incidência nas Regiões Norte e Nordeste. Os dados apontaram também, entre os declarantes espíritas, um elevado percentual de brancos, bem como as melhores taxas de escolarização (IBGE, 2012, p. 101 e 104). Com respeito à umbanda e o candomblé, não houve registro de mudança na última década. É um núcleo que permanece estacionado na faixa dos 0,3% pontos percentuais. Sua presença mais importante ocorre na Região Sul e sua menor incidência nas regiões Centro-Oeste e Norte.
            As outras religiosidades concentram-se numa faixa restrita de 2,7% de declaração de crença. Registra-se um crescimento deste segmento na última década, já que no censo de 2000 eles representavam 1,8% dos declarantes. Dentre estas religiosidades destacam-se a presença do budismo (243.966), do judaísmo (107.329) e das novas religiões orientais (155.951). Tanto o islamismo como o hinduísmo ainda apresentam uma reduzida declaração de crença no país, contando com respectivamente 35.167 e 5.675 adeptos.
           
Reagindo aos dados

            Os dados apresentados pelo último censo demonstram, de fato, um aumento da diversidade religiosa no país. Mas trata-se ainda de uma diversidade um pouco acanhada, já que dois contingentes da área cristã, os católicos e evangélicos, concentram praticamente 86,8% da declaração de crença no país[2]. Isso significa a permanência de uma forte hegemonia cristã. As outras religiões, incluindo aqui a religião espírita, a umbanda, o candomblé e as tradições indígenas, bem como as demais registradas pelo IBGE na modalidade de outras religiosidades, ficam reduzidas a uma estreita faixa de 5% da declaração de crença. A esta porcentagem soma-se também a presença importante dos sem religião, com 8,0% de adesão declarada.
            Talvez um elemento que jogue a favor dessa percepção plural do campo religioso brasileiro é a compreensão das teias diversificadas que configuram o catolicismo no país. Trata-se de um catolicismo de malhas largas, que acolhe em seu próprio interior “muitas religiões”, e que se veste de plural, como tão bem acentuou Pierre Sanchis em introdução a uma pesquisa de fôlego realizada pelo ISER em torno do catolicismo (SANCHIS, 1992, p. 33). Desde sua longa presença no Brasil, o catolicismo foi adquirindo uma artimanha particular, favorecendo e permitindo a polissêmica incorporação de várias culturas e ajeitando-se às múltiplas formas de vivência pessoal e comunitária da fé. É um catolicismo que faculta a possibilidade de dupla ou tripla pertenças, como as pesquisas de campo têm favorecido perceber. Há católicos que acreditam na reencarnação ou que combinam elementos de diferentes espiritualidades em seu repertório identitário. O antropólogo Carlos Steil cunhou a feliz metáfora da “porta giratória” para tratar desse complexo e instigante fenômeno da presença de “diferentes regimes do religioso” que se articulam no campo do catolicismo. E exemplifica a partir de um estudo de caso o influxo num grupo específico do catolicismo de crenças do repertório do catolicismo popular, do pentecostalismo, do espiritismo, das religiões afro-brasileiras e da nova era (STEIL, 2004, p. 30-31). Essas pertenças múltiplas o censo não consegue ainda captar com pertinência, ou então as pessoas ficam inibidas em declarar. No último censo apenas 15.379 pessoas declararam múltipla religiosidade, o que, sem dúvida, não corresponde à realidade.
            Interessante constatar a dificuldade de segmentos importantes da igreja católico-romana em reconhecer essa situação de enfraquecimemto do catolicismo no país. O censo mostra a realidade de uma sangria que não pode ser desconhecida ou minimizada. Verifica-se um nítido contraste entre os dados apresentados pelo último censo e os dados divulgados pelo censo anual da igreja católica no Brasil, produzidos pelo Centro de Estatísticas Religiosas e Investigações Sociais (CERIS). Na avaliação do CERIS, o catolicismo no Brasil está “vivo e vicejante”, e em “franca expansão”. Na visão desse organismo, a vitalidade vem expressa pelo “crescimento vertiginoso” das paróquias e pelo “crescimento considerável” do número de padres (CERIS, 2011). Estaria em curso, segundo a avaliação do CERIS, um processo de “reencantamento da fé católica” proporcionado pelos empreendimentos missionários em curso. O ex-assessor da CNBB, o sociólogo Pedro Ribeiro de Oliveira, reage a tal avaliação, sublinhando que não se pode avaliar a vitalidade da igreja pelo aumento de número de paróquias ou pelo crescimento do número de padres.  Esse aumento reflete para ele não a vitalidade da igreja, mas sua clericalização. A seu ver, a força de qualquer igreja está na sua capacidade de “congregar” os fiéis, de envolver os leigos na participação eclesial, de forma a se poderem reconhecer como igreja. A vitalidade da instituição não se mede pelos efeitos de sua clericalização, mas por sua potencialidade de abertura ao mundo. E complementa: “Uma igreja é forte quando tem grupos de leigos que se reúnem para atuar no mundo. Hoje o que vemos é a força de atrair para dentro, ou seja, o bom católico é aquele que está na igreja. Isso aí é o definhamento da instituição” (OLIVEIRA, 2012 ). Há também aqueles que tendem a minimizar os dados apresentados pelo censo indicando que os católicos que ficaram são aqueles “mais convictos”, ou seja, o êxodo indicado refletiria tão apenas a sinalização da qualidade efetiva dos fiéis que permaneceram.
             O censo aponta não apenas a queda do número dos católicos no Brasil, como também o vertiginoso crescimento evangélico. Já se falou das Grandes Regiões onde ocorreu essa maior presença, mas vale destacar o Estado do Rio de Janeiro, onde em algumas cidades como Duque de Caxias, Nova Iguaçu e Belford Roxo, o número dos evangélicos já ultrapassou o número de católicos romanos. Isso se deve, sobretudo, à força pentecostal. E entre as igrejas pentecostais, os dados revelaram a pujança da Assembléia de Deus, que congrega 12,3 milhões de adeptos declarantes, um número bem superior à soma dos membros de todas as tradicionais igrejas evangélicas de missão, como as igrejas luterana, presbiteriana, metodista, batista, congregacional e adventista, que em conjunto englobam 7,6 milhões de adeptos declarantes. Segundo a projeção de estatísticos, se essa tendência permanecer, até o ano de 2040 o número de católicos e evangélicos vai se equalizar. Esse prognóstico vem reforçado com a constatação da presença jovem entre os pentecostais, que apresentam uma idade mediana menor que a verificada entre os católicos romanos. É curioso verificar o poder de penetração da Assembléia de Deus por toda parte, incluindo o âmbito das tradições indígenas, cujo número de convertidos à tradição evangélica aumentou em 42% nos últimos dez anos, sendo uma boa parte ligada à Assembléia de Deus. Nem todas igrejas pentecostais tiveram a mesma sorte, como é o caso da Igreja Universal do Reino de Deus, que ao contrário das projeções, perdeu 228 mil fiéis na última década, talvez em razão da afirmação de igrejas dissidentes e também da pulverização existente no campo pentecostal. Como já apontara o Censo Institucional Evangélico CIN, de 1992, o número de denominações pentecostais multiplica-se no Brasil a partir de 1950, sendo grande parte de criação local, num ritmo de cerca de 10 novas denominações por década (ISER, 1992, p. 21)
            Os dados do censo referentes ao crescimento dos sem religião no Brasil levantam outras questões, como a denominada “desafeição religiosa” e o diversificado “trânsito” ou “experimentação religiosa” em curso no país. Quando se fala sobre os sem religião, indica-se sobretudo aqueles declarantes que estão “desencaixados” de seus antigos laços e que não apresentam mais os vínculos institucionais tradicionais. Muitos deles conformam sua religiosidade com recursos subjetivos peculiares ou com rearranjos criativos. Há também os agnósticos e ateus, mas estes constituem uma minoria. De acordo com os dados do último censo, no âmbito geral dos sem religião, que envolvem 15,3 milhões de declarantes, os agnósticos representam apenas 124,4 mil e os ateus 615 mil pessoas. O censo de 2010 indicou que os sem religião são mais frequentes entre os jovens  e os adultos jovens (IBGE, 2012, p. 99). São estes núcleos, como bem acentuou Regina Novaes, onde ocorre maior “disponibilidade para a experimentação”[3]. São eles “os que mais transitam entre vários pertencimentos em busca de vínculos sociais e espirituais (NOVAES, 2005, p. 271)

Um convite à reflexão

            Os dados estão aí colocados. Cabe agora às igrejas cristãs refletirem sobre suas implicações concretas e os desafios que eles apresentam à sua caminhada. Revela-se de importância essencial entender essa dinâmica de pluralização não necessariamente como um limite ou problema, mas como uma provocação viva para o exercício missionário sob novas bases e motivado por um espírito diferenciado.
           
           
Referências Bibliográficas

CERIS. Censo anual da Igreja católica no Brasil – CAIC Br. Rio de Janeiro, 2012:  http://www.ceris.org.br/pdfs/analise_censo_igreja_2011.pdf . Acesso em 7/8/2012.

FERNANDES, Sílvia. “A (re) construção da identidade religiosa inclui dupla ou tripla pertença”. IHU Notícias, 07/07/2012:

INSTITUTO Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Censo demográfico 2010. Características gerais da população, religião e pessoas com deficiência. Rio de Janeiro: IBGE, 2012, p. 89.
ISER – Núcleo de Pesquisa. Censo Institucional Evangélico – CIN 1992. Rio de Janeiro: ISER, 1992.

NOVAES, Regina. Juventude, percepções e comportamentos: a religião faz diferença? In: ABRAMO, H.W. & BRANCO, P.P.M. (Orgs). Retratos da juventude brasileira. Análise de uma pesquisa nacional. São Paulo: Instituto Cidadania/Fundação Perseu Abramo, 2005, p. 263-290.

OLIVEIRA, Pedro Ribeiro de. A desafeição religiosa de jovens e adolescentes. IHU Notícias, 5/7/2012:

SANCHIS, Pierre. O repto pentecostal à “cultura católico-brasileira”. In: ANTONIAZZI, Albert et al. Nem anjos nem demônios. Interpretações sociológicas do pentecostalismo. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 34-63.

SANCHIS, Pierre. Introdução. In: ______. (Org). Catolicismo: modernidade e tradição. São Paulo: Loyola, 1992, p. 9-39.

STEIL, Carlos. Renovação Carismática Católica: porta de entrada ou de saída do catolicismo? Uma etnografia do Grupo São José, em Porto Alegre. Religião & Sociedade, v. 24, n. 1, 2004, p. 11-36.

TEIXEIRA, Faustino & MENEZES, Renata (Orgs). As religiões no Brasil. Continuidades e rupturas. Petrópolis: Vozes, 2006.


(Texto publicado na Revista Eclesiástica Brasileira, v. 72, n. 288, outubro 2012, p. 958-964)



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[1] Trata-se de um texto de discussão/estudo elaborado por solicitação do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC), visando o debate de suas Organizações Regionais, tendo como horizonte a produção de uma cartilha que faculte às Igrejas associadas situarem-se no contexto do pluralismo religioso.
[2] Isso já havia sido sublinhado pelo sociólogo Antônio Flávio Pierucci em artigo publicado em 2006: Cadê nossa diversidade religiosa? (TEIXEIRA & MENEZES, 2006, p. 49-51).
[3] Ver também (FERNANDES, 2012)