segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Por toda parte, o segredo de Deus


Por toda parte, o segredo de Deus

Entrevista a Graziela  IHU Online – 26/10/2012
Faustino Teixeira (PPCIR-UFJF)

1.    Como distinguir a experiência mística presente nas tradições religiosas ocidentais com respeito às religiões do Oriente?

Nas grandes religiões orientais o traçado místico passa pela dinâmica da interioridade, do êntase (em distinção do êxtase). Trata-se de um caminho que possibilita a descoberta do Mistério no “íntimo do Si substancial”. Verifica-se, por exemplo, na tradição hindu uma experiência bem peculiar, de busca de superação do eu empírico mediante etapas e métodos diferenciados, sempre com a indispensável ajuda de um guru. Busca-se superar a dualidade sujeito/objeto, visando o horizonte do advaita (a-dualidade), uma nova realidade e uma nova forma de conhecimento. Na tradição mística do budismo, em suas diferentes formas (theravada, hinayana, mahayana, vajrayana) sublinha-se, antes, o “silêncio de Deus”, que é uma maneira singela de “preservar a condição misteriosa do último”. O acento vem dado no “caminho” que leva à libertação, que envolve um particular trabalho da experiência. Por sua vez, nas tradições religiosas ocidentais a ênfase recai na experiência de uma alteridade reconhecida como inevitável e essencial, mas sempre vinculada ao exercício da palavra. No judaísmo, como lembra Abraham Heschel, a contemplação de Deus passa pela percepção de sua viva presença nas coisas, na Bíblia e nos atos sagrados (adoração, ciência e ação). Não há como conceber o ser humano cerceado na sua solidão. Segundo Heschel, “a alma humana  definha quando arrancada daquilo que é maior do que ela. Sem o santo, o bom se torna caótico”. Quando o olhar vem situado no horizonte dessa maravilha, torna-se capaz de perceber com mais lucidez aquilo que está próximo. Daí a excelência da oração, que situa o ser humano no extremo oposto do “ego”, facultando-lhe a possibilidade de “ver todas as coisas do ponto de vista de Deus”. E esta perspectiva mística suscita, necessariamente, uma “ação humanizadora”. Igualmente no cristianismo, a mística bebe na seiva dos livros sagrados (primeiro e segundo testamentos), desdobrando-se numa perspectiva que é especulativa ou nupcial. A iluminação contemplativa, que não se desvia da dinâmica do conhecimento, encontra sua consumação mais radical no amor unitivo. Como sublinha com acerto Henrique Cláudio de Lima Vaz, “a linguagem da união característica dos autores místicos denota, na sua sua forma frequentemente paradoxal, uma luta dramática para exprimir o inexprimível. É fundamental, no entanto, assinalar que, mesmo na inefabilidde da união, a mística cristã permanece uma mística da palavra”. E por fim, a tradição mística islâmica também está fundada na palavra. A grande teofania está ali presente num livro: o alcorão. Não se trata de um livro qualquer, mas como assinala Massignon, apresenta-se como “um ditado sobrenatural, registrado por um profeta inspirado”. Não há como deslocar a experiência mística do islã, o sufismo, entendido como sua dimensão interior, da tradição mesma em que sempre esteve associado. O sufismo não se firma em rutptura com a fé corânica, mas em linha de sua interiorização e aprofundamento.

2.    Quais as peculiaridades que definem a mística islâmica?

O sufismo (tasawwuf) é o nome mais recorrente para designar a experiência mística do islã, traduzindo uma “dimensão interior” muitas vezes desconhecida ou desapercebida na tradição islâmica. A experiência de fé islâmica ganha com o sufismo uma perspectiva de interiorização e intensificação. Os sufis consideram-se verdadeiros muçulmanos, realizando em sua vida três das dimensões essenciais do islã: a entrega abnegada (islâm), a fé (îmân) e a prática do bem (ihsân). O que mais seduz no contato com os grandes místicos dessa tradição, é a rica experiência de Deus por eles vivenciada: de um Deus que é proximidade e misericórdia, que suscita o mais vivo amor desinteressado. E Ele está em toda parte, trazendo sua “caravana de açucar”, como lembra Rûmî num de seus lindos poemas. Na perspectiva do sufismo, a razão de ser de todo o humano, e de toda a criação, é poder resgatar a comunhão com essa fonte de generosidade, misericórdia e gentileza, e poder irradiar entre os outros a sua fragrância de vida, força e luz. Diz Rûmî: “De toda parte chega o segredo de Deus; eis que todos correm, desconcertados. Dele, por quem todas as almas estão sedentas, chega o grito do aguadeiro. Todos bebem o leite da generosidade divina e querem agora conhecer o seio de sua nutriz”.

3.    Pode-se destacar alguns de seus mais importantes representantes?

O sufismo acompanha os passos da tradição islâmica. No sufismo mais clássico, marcadamente asceta, destacam-se alguns importantes nomes, como Rabi´a al-Adawiyya (m. 801). Foi ela quem introduz no sufismo o tema essencial do amor desinteressado. Podem também ser mencionados nesse momento inicial os místicos Dhu´n-Num (m. 859) – conhecido como o introdutor da ideia do conhecimento intuitivo de Deus (ma´rifa) -, e Abu Yazid Bistami (m. 874), célebre por suas locuções teopáticas. Há ainda as presenças importantes de Abu´l-Qasim al-Junayd (m. 910) e Al-Hallaj (857-922). Al-Junayd é conhecido como o místico da sobriedade (sahw). Para ele, os mistérios da mística não podem ser revelados abertamente, fora do círculo dos iniciados. Distintamente, Al-Hallaj, conhecido como o místico mártir do islã, é marcado pela ebriedade (sukr). Trata-se de um místico ardoroso, que manifesta abertamente os laços de sua união amorosa com Deus, sem as cautelas ponderadas por alguns dos mestres desta tradição. E pagou por isso… A poesia sufi está carregada desse sentimento de embriaguês. Há, porém, que registrar também a presença nessa tradição de uma corrente mística que busca disfarçar o estado embriagado interior com um comportamento exterior sóbrio, não deixando transparecer externamente as próprias virtudes. São os assim chamados malamatis. O sufismo encontra sua maturidade com a poesia e prosa persa de místicos como Farid ud-Din Attar (m. 1220) e Jalal ud-Din Rûmî (1207-1273).

4.    Em que medida a mística islâmica favorece a acolhida da diversidade religiosa?

Na visão de um dos grandes metafísicos do sufismo, Ibn´Arabi (1165-1240), todas as coisas que subsistem estão envolvidas pelo “Hálito do Misericordioso”. As teofanias estão acontecendo a cada momento, brilhando na dinâmica de movimento do coração, que é, por excelência, o “ponto de impacto dos acontecimentos espirituais”. Trata-se do órgão fundamental da experiência mística, espelho da contemplação. A realidade plural, incluindo aí as diversas manifestações de crenças, vem percebida em toda a sua positividade, na medida em que suas raízes fundam-se no mistério de Deus. Na verdade, o sufismo preocupa-se fundamentalmente com o “Princípio único”, que está na raiz das ramificações religiosas. Fixar-se numa única ramificação, desconhecendo as riquezas que habitam nas outras é, para os sufis, desconhecer as vertentes mais profundas do Mistério sempre maior. Em clássica obra sobre os “engastes da sabedoria” (Kitâb Fusûs al-Hikam), ao tratar do profeta Hûd, Ibn´Arabi adverte para o risco da concentração exclusiva num credo particular, renegando as riquezas que existem alhures. Sublinha que uma tal concentração acaba deixando escapar um “bem imenso”. A diversidade é, antes, um valor essencial, que não se pode negligenciar na dinâmica do crescimento na “ciência da Verdade”. É na linha da “religião do amor” que avançam as caravanas dos místicos como Al-Hallaj, Ibn´Arabi e Rûmî. Como indica Rûmî, numa das mais lindas passagens de seu Mathnawi, a fixação no território das formas acaba impedindo o buscador de captar a “árvore da vida”, pontuada por incontáveis nomes e cujo segredo só é possível captar quem tem o coração aberto para o mistério da diversidade.

5.    Pode-se também falar em outras formas não religiosas de mística?

Não há dúvida alguma sobre isso. Há que sublinhar, primeiramente, que todo místico tem uma relação de liberdade com respeito à sua própria tradição. Em razão de seu mergulho na profundidade espiritual, ele acaba se dando conta da realidade limitada e vulnerável de sua própria tradição, sem que isso implique diminuição de seu amor por ela. O que ocorre é que o movimento de aprofundamento do próprio vínculo acaba suscitando um exercício novo de liberdade e de abertura. O místico busca garantir, uma “margem indizível” para o horizonte experimentado ou aproximado. E esta experiência spiritual pode também acontecer fora  das crenças, como bem lembrou Michel de Certeau em classico artigo sobre o tema, publicado na Encyclopaedia universalis (1971). A possibilidade de uma experiência de profundidade, de radical comunhão com o universo, de abertura ao mistério das coisas, não é propriedade de quem vive uma experiência religiosa explícita. Fala-se hoje, com força de evidência, sobre a positividade de espiritualidades da imanência e de movimentos singulares de experimentação da plenitude do real. Há que estar aberto e desarmado para deixar-se provocar por tais ventos novidadeiros.

(Publicada no IHU Online n. 407 – 05/11/2012)


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