quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Cultivo da Formação e a vida intelectual - Homenagem aos 80 anos de J.B.Libânio

Cultivo da formação e a vida intelectual

Faustino Teixeira[1]

“Há vocações de copa. Elas se elevam

para respirar os ares das alturas.

Ou, se quisermos, de águia.

Voam alto, vêem lá embaixo,

Em forma pequena,

Mas em amplas extensões,

O mapa da realidade”

(J.B.Libânio)

O início da trajetória

Na história da Igreja do Brasil nesse período pós-conciliar, João Batista Libânio destaca-se como uma das personalidades mais singulares. Trata-se de alguém que marcou com o seu traço peculiar a vida e a trajetória de muitos dos leigos, agentes de pastoral, religiosos, sacerdotes e bispos brasileiros, com impacto em toda a vida eclesial da América Latina. Há que destacar, em particular, sua presença especial no âmbito da formação e da vida intelectual. Foi nesse campo que iniciou seu percurso em Roma, nos anos conciliares. Em substituição a Marcello Azevedo (SJ), foi convocado a assumir o trabalho de “repetidor de estudos” no Colégio Pio Brasileiro, em Roma, no ano de 1963. É o nome que se dava para o orientador dos estudantes de filosofia e teologia daquela instituição que se ocupava de abrigar os alunos brasileiros que frequentavam as universidades pontifícias romanas. Ali começou o seu frutuoso trabalho de formação e iniciação à vida intelectual de muitos brasileiros. Era alguém preparado para o cargo, animado pela força da juventude e pelo cultivo intelectual gestado em Faculdades Teológicas da Espanha (Comillas) e Alemanha (Hochschule Sankt Georgen – Frankfurt)[2]. Não havia melhor ocasião para se estar na Itália, em plena primavera conciliar. Libânio pôde acompanhar com os alunos toda a gestação dos grandes documentos que marcaram a vida da Igreja católica nas décadas seguintes. Os grandes nomes da teologia estavam em Roma, acompanhando o evento conciliar, e muitos dos textos fundamentais desses pensadores foram objeto das sínteses e esquemas que Libânio organizou para a preparação dos estudantes. Os inúmeros esquemas elaborados nesse processo de formação dariam, certamente, muitos livros, e tinham uma ampla abrangência, envolvendo os grandes temas da teologia sistemática, da liturgia, da pastoral e da moral. Dentre os mais de 80 dirigidos por Libânio na ocasião estavam futuros teólogos, pastoralistas e filósofos que hoje se destacam no cenário nacional como Oscar Beozzo, Manfredo de Oliveira, Geraldo Lírio Rocha e Raymundo Damasceno[3].

Na trilha de grandes mestres

Em testemunho biográfico[4], Libânio reconhece que teve grandes mestres em sua rica trajetória: os da vida e os dos livros. Reconhece que o primeiro mestre foi seu pai, que o introduziu nos mistérios da língua latina. Era um médico especial, dotado de uma abertura de horizontes invejável. Com ele veio também a sensibilidade pela beleza cultural. Vasta era sua biblioteca na área de literatura. Talvez tenha suscitado um primeiro germe na vocação acadêmica transversal do filho e futuro teólogo. Explica-se como junto com o interesse filosófico e teológico, Libânio também motivara-se com a área das línguas e literatura, tendo se diplomado em letras neolatinas na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Com o ingresso na Companhia de Jesus, em fevereiro de 1948, teve importantes mestres no âmbito intelectual e sinaliza algumas presenças que foram decisivas em sua formação. Sublinha a presença do Pe. Antônio Aquino, que abriu caminhos no campo do exercício metodológico. Aprendeu com ele a disciplina, o rigor do método e a organização intelectual. São traços essenciais que vão conformar a carreira acadêmica de Libânio e o seu jeito peculiar de formador. Um detalhe importante veio desse primeiro mestre: o incentivo permanente para a prática da escrita. Libânio reconhece a importância desse primeiro incentivo: “Se hoje não tenho inibição em escrever, muito devo a esse mestre que bem cedo me levou a perder o medo e vencer a preguiça de escrever”[5]. Em seu livro Introdução à vida intelectual (2001), Libânio vai assinalar que a facilidade de escrever traduz um “exercício de aprendizagem vivido na família e praticado nos anos escolares”. Mas envolve também um “fator de personalidade”, e isso é importante acentuar. Sublinha em sua obra que “escrever para publicar implica uma estrutura psíquica que tenha um grau de segurança tal que suporte expor-se às críticas sem se quebrar (...). Pessoas inseguras, perfeccionistas, obsessivas, rigoristas têm enorme dificuldade de escrever e publicar seus escritos. Nunca os julgam suficientemente bons para tal. Temem o mínimo sinal de rejeição, que pode ser sentido na critica”[6]. A presença de Pe. Aquino na vida de Libânio e a dinâmica dessa “amizade epistolar” favoreceram a tranquilidade e a leveza para que ele avançasse nessa arte de escrever. E sua enorme produção literária é o sinal mais vivo desse desbloqueio.

Em seus estudos na Alemanha, teve outro grande mestre, Franz Lennartz. Com ele se deu a abertura para o “universo da psicologia profunda, da personalidade, do conhecimento humano, da vida como experiência existencial”. Sua presença aconteceu num momento importante da vida de Libânio, depois de um período de formação mais fechada no Brasil, acentuada ainda mais em sua passagem pela Espanha. Na Alemanha descortinou com a ajuda desse mestre horizontes mais amplos. A importância desse registro da abertura vem reconhecida por Libânio em sua obra sobre a vida intelectual. Sinaliza, com razão, que “a vida intelectual só se desenvolverá se se mantiver uma atitude de abertura ao diferente, ao novo, ao questionamento”. E essa abertura não pode envolver apenas um segmento do humano, mas deve tocar a “totalidade humana”, cujo centro está na afetividade[7].

Em Roma, ao assumir o instigante desafio de dirigir os estudos dos seminaristas brasileiros, encontrou outro referencial, Pe. Oscar Mueller. Libânio relebra que esse mestre aprofundou em sua vida um traço já presente na influência de seu pai, mas que havia sido inibido na formação tradicional recebida na época. Era o traço do “sentido agudo pela liberdade pessoal e pelo respeito aos caminhos dos outros”. Talvez tenha sido esse um dos princípios norteadores de toda a pedagogia de Libânio em sua trajetória com os grupos de jovens, que favoreceu a confiança necessária para uma relação duradoura. Duas nobres palavras que tecem o vocabulário existencial de Libânio: liberdade e respeito. Como um excelente pedagogo, o teólogo mineiro pautou sua metodologia pelo profundo respeito ao processo de decisão que envolve o caminho de cada um. Numa de suas clássicas reflexões sobre a Opção Fundamental, que tanto marcou os jovens da época, dizia que a decisão é um “processo ontológico pelo qual o indivíduo se torna ser humano, orienta-se para o que é e quer ser”[8]. Há um dinamismo vivo em todo esse processo, caracterizado pelo toque do respeito e da liberdade, onde as decisões que tecem o processo vital vão se firmando num diálogo ininterrupto consigo mesmo, com os outros e com o Mistério sempre maior. Nas decisões concretas é que vai se plasmando a orientação fundamental da vida, que pode sinalizar um caminho de sintonia com o outro e com Deus. Esse foi um aprendizado passado com muita lucidez por Libânio nas grandes lides com a juventude dos anos 70 e 80, mas que permanecem vivas no tempo atual.

Uma das presenças mais decisivas na vida de Libânio foi o Pe. Henrique Cláudio de Lima Vaz. Foi aquele que o acompanhou por grande parte de sua trajetória intelectual, desde a década de 1950. Em testemunho sobre sua influência, Libânio assinala: “Falar dele seria interminável (...). Inteligente, extremamente atualizado me seduziu imediatamente. Dentro das estrutura rígidas de então, ele logo tornou-se, pela abertura de suas idéias, suspeito diante de inteligências extremamente conservadoras que ocupavam cargos de formação na Igreja e na Companhia. Mas, ao mesmo tempo, causava-nos uma atração irresistível”[9]. Era antes de tudo, um grande conselheiro intelectual. Dotado de privilegiada inteligência, firmava-se como mestre maior, abrindo caminhos inusitados para o aperfeiçoamento intelectual. Não era apenas um mestre da inteligência, mas também um amigo para todos os momentos, e de uma simplicidade de vida contagiante, alicerçada numa viva experiência de fé. Libânio recorda que depois de sua volta da Europa, pôde desfrutar de sua companhia amiga por longos períodos, o que foi muito importante para o seu desenvolvimento pessoal e intelectual.

O circuito dos grandes mestres que marcaram a vida de Libânio se enriquece com a presença do teólogo alemão Karl Rahner, que o influenciou profundamente através de suas obras, mas que teve igualmente o privilégio de conhecer pessoalmente através de palestras em Frankfurt e em Roma, por ocasião do Concílio Vaticano II. Libânio recorda que o principal ensinamento recebido desse grande arquiteto da teologia católica foi a “integração do humano e do divino, da graça e da natureza, da história e da escatologia”[10]. Com Rahner abria-se um largo espaço para as reflexões que possibilitariam a irradiação da teologia da libertação, de modo particular, a relação entre a história universal e a história da salvação, entendidas como eventos entrelaçados e coexistentes. Havia uma profunda reverberação rahneriana na reflexão posterior de Gustavo Gutiérrez, com a teologia da libertação, ao tratar, por exemplo, da questão da unidade da história profana com a história sagrada: não duas histórias justapostas, mas “um único devir humano, assumido irreversivelmente por Cristo, Senhor da história: sua obra salvadora abrange todas as dimensões do existir humano”[11].

Espaços de atuação

Ao voltar ao Brasil, em 1969, depois de um longo período de formação acadêmica no exterior, Libânio vai retomando o contato com a realidade. Teve o privilégio de encontrar nesse retorno ao país, um grupo de reflexão que firmou as base de uma compreensão teológica engajada e atuante. O grupo tinha sido arquitetado por Frei Betto e outros dominicanos, ainda quando estavam na prisão, durante o regime militar. Compunha-se de um quadro intelectual de relevo, com presenças importantes como Betto, Leonardo Boff, Ivo Lesbaupin, Carlos Mesters, Pedro Ribeiro de Oliveira, Luiz Alberto Gómez de Souza, Oscar Beozzo, Jether Pereira Ramalho e tantos outros. Muitas iniciativas eclesiais pioneiras no Brasil e mesmo na América Latina foram gestadas nesse grupo, que ainda hoje resiste, com o nome de “Emaús”. Libânio reconhece que as reuniões bi-anuais do grupo foram sempre um forte estímulo e sustentação para a sua caminhada, como também um importante incentivo para uma produção acadêmica articulada com a realidade do país.

Em seu retorno, depois de mais de dez anos de ausência, encontra um novo clima para a reflexão teológica. O tecido eclesial estava também renovado pela presença de movimentos populares libertadores, que sonhavam com um novo horizonte de atuação para as Igrejas cristãs. Era o tempo de gestação da teologia da libertação e das comunidades eclesiais de base. Junto com Leonardo Boff e outros, participou de dois importantes nichos de pesquisa teológica: o grupo de assessores da Conferência dos Religiosos do Brasil e do Instituto Nacional de Pastoral. Nesse espaço propício para reflexões inovadoras e criadoras gestou-se alta produção intelectual, profundamente sintonizada com a nova sensibilidade eclesial-popular. Como assinala Leonardo Boff a respeito, “nunca houve em nosso país um centro tão promissor de quadros teológicos e de fermentação criativa de idéias como nessas duas instituições de assessores da Igreja do Brasil”[12].

Encontrou também no Departamento de Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro um espaço promissor para a irradiação desse novo modo de fazer teologia, apesar da conjuntura eclesiástica adversa da Arquidiocese do Rio. A teologia da PUC-RJ chegou a reunir um quadro docente altamente especializado e competente, em viva sintonia com a teologia da libertação. Entre suas presenças: Libânio, Clodovis Boff, Pedro Ribeiro de Oliveira, Alfonso Garcia Rúbio, Antônio Moser, Carlos Palácio, França de Miranda, Ulpiano Vasquez, Gabriel Selong e outros. Foi um espaço acadêmico que gerou muitas vocações teológicas, envolvendo também muitos leigos e leigas que estão hoje atuando no campo teológico nacional: Maria Clara Bingemer, Ana Maria Tepedino, Teresa Cavalcanti, Faustino Teixeira, Paulo Fernando Carneiro de Andrade.

Em seu relato biográfico, Libânio fala desse novo modo de fazer teologia que pôde experimentar no Brasil após seu retorno: “Aqui fazer teologia é outra coisa. Estava nascendo a teologia da libertação. E logo me engajei nela. E faz parte dela não se dedicar unicamente à academia, ao estudo trancado no gabinete e sim imergir-se na realidade pastoral para a partir dela pensar a teologia”[13]. Motivado para conhecer melhor a situação nacional e mergulhar na realidade latino-americana, circulou por todo o país e outros espaços latino-americanos em trabalhos de assessoria pastoral. Foram momentos muito importantes para conhecer a dinâmica dos movimentos populares e os trabalhos de articulação da pastoral popular. Alguns dos subsídios criados por Libânio para ajudar nos inúmeros cursos ministrados para agentes de pastoral e cristãos engajados fizeram enorme sucesso, como é o caso dos três volumes da Formação da consciência crítica, publicados em parceria da editora Vozes com a CRB (subsídios filosófico-culturais – 1978; subsídios sócio-analíticos – 1980 e subsídios pedagócos – 1980).

Vale também assinalar o importante trabalho exercido por Libânio no acompanhamento e assessoramento dos Encontros Intereclesiais de CEBs, que aconteceram a partir de 1975. Ele foi um dos teólogos que assumiram o trabalho de analisar os relatórios vindos das CEBs para os primeiros intereclesiais[14]. Sobre a qualidade teológica dos trabalhos realizados, o próprio Libânio comenta:

“Creio que os melhores trabalhos que se produziram sobre eclesiologia e sobre o uso da Bíblia pelo povo etc. vieram desses encontros (…). Os artigos que saíram em 75 e 76 e depois em 78, constituem para mim um bloco de trabalho teológico de grande valor. Considero uma das melhores coisas produzidas na teologia do Brasil a respeito de eclesiologia na perspectiva da Teologia da Libertação e muito ligada aos movimentos populares”[15].

Há que registrar igualmente a viva presença de Libânio no acompanhamento da pastoral da juventude já no início de sua chegada ao Brasil. Registra-se sua presença nos Cursos da Juventude Cristã (CJC) no início dos anos 70 e logo depois, a partir de 1972, no acompanhamento dos universitários da assim denominada “Tropa Maldita”, um núcleo nacional de jovens procedentes do CJC que buscavam novos canais de reflexão e de atuação na realidade nacional. Eram jovens de Belo Horizonte, Sete Lagoas, Juiz de Fora, Volta Redonda, Rio de Janeiro e depois São Paulo. Em tempos difíceis da conjuntura política nacional, o grupo se reunia regularmente com Libânio, cerca de quatro vezes por anos, sobretudo na cidade de Juiz de Fora para tratar uma diversidade de temas envolvendo política, filosofia, cultura e religião. Muitas lideranças em vários âmbitos profissionais nasceram desse grupo, que se manteve unido por mais de três décadas, e que ainda se encontra em momentos singulares. Foi um espaço particular de presença e atuação de Libânio, onde pôde imprimir sua marca de formador, mestre espiritual e iniciador intelectual[16].

O trabalho acadêmico de Libânio ganhou prosseguimento em Belo Horizonte, em 1982, com sua vinda para o Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus (CES). Esse Centro acadêmico de excelência vem renomeado em 2005 como Faculdade Jesuita de Filosofia e Teologia (FAJE) e nele continua atuando Libânio como professor de teologia. Esse campo de atuação acadêmica veio enriquecido com o trabalho pastoral junto à Paróquia Nossa Senhora de Lourdes, em Vespasiano (região metropolitana de Belo Horizonte). A presença em Vespasiano começou esporadicamente, até que em 1985/1986 ganhou maior regularidade, com sua presença constante aos finais de semana, como coadjutor dominical do pároco Pe. Lauro Elias. Sobre o significado dessa atuação relata Libânio:

“Aí bebo da seiva gostosa da vida paroquial. Tive a felicidade de encontrar uma paróquia viva e prestar então algum serviço concreto à comunidade em sintonia e em colaboração com o pároco Pe. Lauro. São já anos que aqui venho e dou um pouco de mim nas celebrações, cursos, visitas, atendimentos. A pastoral se alimenta da teologia e me alimenta a teologia. Existe uma circularidade que enriquece”[17].

Os traços do formador

Libânio conjuga em sua vida diferenças facetas que constituem o segredo de sua rica personalidade: é o mestre, o professor, o conferencista, o escritor e o pastor. E essa conciliação é feita com amor e naturalidade, como ele mesmo explica: “o professor comunica seu saber teológico. O conferencista amplia seu raio de comunicação. O escritor formula para si e para os outros nas letras pensadas seu saber. Na pesquisa penetra o mundo desse saber. Na pastoral confronta esses conhecimentos com a realidade”[18]. Nessas diversas esferas de atuação desvela-se o grande formador e mestre, que é capaz de tocar o âmbito mais profundo das pessoas e suscitar um novo nascimento. Todos aqueles que tiveram o privilégio de participar desse processo formativo reconhecem em Libânio esse dom e essa graça.

Alguns segredos desse labor do formador podem ser reconhecidos e destacados em algumas obras de Libânio, de modo particular em duas delas: A arte de formar-se (2001) e Introdução à vida intelectual (2001). Segundo Libânio, o processo de formação é uma arte educativa que traduz uma “verdadeira maiêutica histórica”. Trata-se de desabrochar ou trazer à luz o que ja existe em potência em cada um. O educador não chega como um impositor de verdades, mas como um mestre que ajuda o outro a tomar com suas próprias mãos, no ritmo da liberdade, o próprio desenvolvimento e destino. Ele é um “guru”, no sentido mais nobre da expressão, que ajuda o educando a potencializar suas qualidades humanas e espirituais. É um “iniciador”, cuja tarefa fundamental consiste em tornar a alma disponível para a ação do Espírito.

O formador é também alguém que ajuda o outro a se abrir para a realidade do mundo e discernir os seus contornos; alguém que favorece a afirmação de uma outra atitude diante das coisas, marcada pelo discernimento e lucidez. Esse processo não pode ocorrer sem uma forte motivação:

“Educar-se é fazer-se uma imagem ideal de si e pôr-se a esculpi-la em si mesmo na dura labuta da vida, a fim de unir-se o sonhado e o realizado. Essa tarefa, que exige constância inquebrantável, esforço continuado, sacrifícios e renúncias, não se sustenta sem forte motivação”[19].

Há que se alimentar nesse processo por um permanente discernimento crítico, que desabrocha com mais intensidade no brilho da lucidez. Sobretudo nesse tempo, marcado por tantas mudanças paradigmáticas, há que aprofundar a lucidez em todos os âmbitos do relacionamento humano: consigo mesmo, com os outros e com a natureza. Com a entrada do novo milênio, a questão ecológica ganha um lugar decisivo, que exige muito de cada um. Como indica Libânio, “cabe inverter o esquema central: em vez de senhorio, vivenciar a harmonia, a fraternidade, o respeito e a comunhão com a natureza”[20]. Há também que lutar com todos os instrumentos disponíveis contra a ameça do individualismo. Trata-se do essencial aprendizado de “viver com os outros”[21], em atitude de tolerância, generosidade, delicadeza, cortesia e abertura. São outros traços sempre acentuados por Libânio em suas reflexões.

Igualmente no âmbito da formação intelectual, Libânio sugere atitudes que são essenciais. Sublinha que a vocação intelectual envolve a totalidade do humano, conjugando um trabalho de autoconhecimento e de comunhão com a realidade. Levanta pistas preciosas para aqueles que querem se iniciar nessa arte. Sua visão vem respaldada por décadas de experiência no campo da orientação intelectual. A seu ver, o segredo está numa vida bem regrada e que saiba, com lucidez, integrar os diversos planos e dimensões da existência. Há que estar, em primeiro lugar, motivado para tal empreendimento. Essa é uma das tarefas mais importantes de um formador: despertar o interesse e a motivação do outro nos caminhos do aprendizado. Como bom jesuíta, ressalta a importância do equilíbrio. A vida intelectual requer condições precisas para o seu desenvolvimento, entre as quais a “saúde física e psíquica”. Há que equilibrar o organismo, evitando o desgaste e o esgotamento. Libânio sugere uma regra essencial, que cunhou com um nome sugestivo, per oppositum: “o descanso se faz pelo oposto. Cansaço físico pede repouso. Cansaço psíquico pede exercício físico”[22]. Ressalta algumas atitudes psicológicas que são essenciais para o equilíbrio do trabalho intelectual: evitar o perfeccionismo, a falta de motivação e ampliar a gama de satisfações[23]. O bom trabalho requer ainda um sadio relacionamento humano, um propício ambiente de trabalho e estruturas de apoio para sua realização. São condições essenciais para a afirmação de um processo educativo exitoso. Como sinaliza Libânio, “é um processo interno, mas favorecido por condições externas. A vida intelectual exige que se cuide de ambos. Assim, uma motivação consistente e o cuidado com as disposições físicas e psicológicas permitem caminhar tranquilamente pelas vias da inteligência”[24].

São disposições que facultam o essencial segredo da aprendizagem, que se torna ainda mais urgente nesse mundo da complexidade. É um exercício que envolve as aquisições essenciais do passado, a percepção viva do presente e a abertura para a densidade do futuro. Tudo isso requer agilidade, desenvoltura e flexibilidade: “Aprender a conhecer supera a tendência atual da hiperespecialização, da fragmentação, da separação, da compartimentação dos saberes e das disciplinas, para pensá-los de maneira polidisciplinar, transversal, multidimensional, transnacional, global e planetária”[25].

Abertura de novos caminhos

Em sua rica trajetória de vida, Libânio não só apontou pistas fundamentais para a dinâmica formadora e a iniciação intelectual, mas também firmou-se como um grande propulsionador da reflexão teológica no Brasil, América Latina e Caribe. Foi responsável pela elaboração de roteiros fundamentais, envolvendo a teologia da libertação, a introdução à teologia, o tratado da fé e a escatologia cristã. Contribui também para importantes reflexões no âmbito da eclesiologia, da teologia latino-americana, da pastoral da juventude, da pastoral urbana e dos estudos sobre religião. Um dos toques de singularidade de sua reflexão teológica, marcada pela transversalidade, é a permanente abertura ao mundo do outro. Seu trabalho diuturno foi sempre no sentido de “incorporar a alteridade religiosa no método e no conteúdo”[26] da teologia. Não há como fazer teologia, indica Libânio, sem inteligência, coração e compromisso. A inteligência faculta a luz necessária para a lucidez do trabalho teológico. O coração possibilita vencer a frieza e acolher a inspiração da intuição, que faz a teologia ser tocado pelo pathos de Deus. E o compromisso favorece a inserção viva e criativa da teologia no quadro da realidade social[27].

(Publicado in: Afonso MURAD & Vera BOMBONATTO (Orgs). Teologia para viver com sentido. Homenagem aos 80 anos do teólogo João Batista Libânio. São Paulo: Paulinas, 2012, pp. 159-169).



[1] Teólogo, professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora. Pesquisador do CNPQ e Consultor do ISER-Assessoria (RJ). Dentre seus âmbitos de pesquisa: Teologia das Religiões, Diálogo Interreligioso e Mística Comparada das Religiões. Publicações mais recentes: Catolicismo plural. Dinâmicas contemporâneas. Petrópolis: Vozes, 2009 (junto com R.Menezes); Ecumenismo e diálogo interreligioso. Aparecida: Santuário, 2008 (com Z.M.Dias); O canto da unidade. Em torno da poética de Rûmî. Rio de Janeiro: Fissus, 2007 (com M.Lucchesi).

[2] Em Roma concluirá o seu doutorado em teologia, em 1968, na Pontifícia Universidade Gregoriana, sob a orientação de Zoltan Alszeghy (SJ). Como tema: “Críticas aos estudos eclesiásticos filosófico-teológicos e propostas de renovação na literatura recente”.

[3] Oscar Beozzo atua hoje no CESEP e na assessoria de pastorais populares; Manfredo Oliveira é professor titular da Universidade Federal do Ceará (Departamento de Filosofia); Dom Geraldo Lírio Rocha é arcebispo de Mariana e ex-presidente da CNBB (2017-2011) e Dom Raymundo Damasceno é arcebispo de Aparecida e atual presidente da CNBB, eleito em 2011.

[4] Johan KONINGS (Org). Teologia e pastoral. Homenagem ao Pe. Libânio. São Paulo: Loyola, 2002, pp. 181-185 (Entrevista concedida a Eduardo Franco, Jornal de Opinião).

[5] Ibidem, p. 182.

[6] João Batista LIBÂNIO. Introdução à vida intelectual. São Paulo: Loyola, 2001, p. 164.

[7] Ibidem, pp. 81 e 84.

[8] João Batista LIBÂNIO. Crer e crescer. Orientação fundamental e pecado. São Paulo: Olho D´água, 1999, p. 22.

[9] Johan KONINGS (Org). Teologia e pastoral, p. 184.

[10] Ibidem, p. 183.

[11] Gustavo GUTIÉRREZ. A força histórica dos pobres. Petrópolis: Vozes, 1981, p. 51. Comparar com Karl RAHNER. Curso fundamental da fé. São Paulo: Paulinas, 1989, p. 178.

[12] Johan KONINGS (Org). Teologia e pastoral, p. 38.

[14] Dois trabalhos de Libânio podem ser destacados nesse âmbito: Uma comunidade que se rededine. Sedoc, v. 9, n. 95, 1976, pp. 293-326 e Comunidade Eclesial de Base: pletora de discurso. Sedoc, v. 11, n. 118, 1979, pp. 765-787.

[15] João Batista LIBÂNIO. O caminho da teologia. In: Instituto Nacional de Pastoral (Org). Pastoral da Igreja no Brasil nos anos 70. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 192.

[16] A experiência de Libânio com a “Tropa” foi importante fonte de inspiração para o seu livro: O mundo dos jovens. Reflexões teológico-pastorais sobre os movimentos de juventude da Igreja. São Paulo. Loyola, 1978.

[18] Johan KONINGS (Org). Teologia e pastoral, p. 188.

[19] João Batista LIBÂNIO. A arte de formar-se. São Paulo: Loyola, 2001, pp. 121-122.

[20] João Batista Libânio. Em busca da lucidez. O fiel da balança. São Paulo: Loyola, 2008, p. 21.

[21] João Batista LIBÂNIO. A arte de formar-se, p. 59s.

[22] João Batista LIBÂNIO. Introdução à vida intelectual. São Paulo: Loyola, 2001, p. 130.

[23] Ibidem, pp. 131-134.

[24] Ibidem, p. 136.

[25] João Batista LIBÂNIO. A arte de formar-se, p. 20.

[26] João Batista LIBÂNIO & Afonso MURAD. Introdução à teologia. São Paulo: Loyola, 1996, p. 272.

[27] Ibidem, pp. 371-372.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

O fenômeno do fundamentalismo religioso

O fenômeno do fundamentalismo religioso

Faustino Teixeira

PPCIR-UFJF

O fundamentalismo religioso é um fenômeno complexo e com desdobramentos bem precisos nesse limiar do século XXI. É verdade que o conceito foi muito inflacionado, cobrindo dimensões bem distintas e mais amplas do que aquelas que se referem à sua origem propriamente dita. Daí a necessidade de matização ao aplicar o termo para outras designações religiosas. Mas há sempre uma referência do fenômeno à modernidade, ou melhor, a uma precisa reação à modernidade. Ele traduz um temor disseminado contra os ventos modernizantes do processo de pluralização. A grande abrangência da pluralização e sua disseminação incontrolada provocam desorientação em muitas pessoas e comunidades, que sentem perder o chão firme da tradição, que lhes proporcionava firmeza e segurança. Em razão da condição de incerteza permanente provocada pelos ventos plurais, que desestabilizam o mundo auto-evidente das crenças e convicções, muitos tendem a buscar o seu apoio nos projetos restauradores de sentido, que convocam com vigor os absolutismos encrustados no mundo das tradições. Como indica Jürgen Moltmann, “os fundamentalistas não reagem às crise do mundo moderno, mas às crises que o mundo moderno provoca em sua comunidade de fé e em suas convicções básicas”.

Na origem do fundamentalismo, há esse sentimento de desorientação. E isso aconteceu seminalmente no mundo protestante. É uma reação ao processo modernizante vivido pelo protestantismo liberal em seu procedimento de “adaptação cognitiva” à modernidade. A teologia liberal protestante, no século XIX, abraçou alguns pressupostos modernizantes como a assunção do método histórico-crítico na leitura e interpretação da Bíblia, a relativização da tradição dogmática da igreja e a ênfase numa leitura ética do cristianismo. A reação foi imediata entre grupos de protestantes para os quais esse revisionismo liberal estaria corroendo aquilo que para eles era essencial no campo da fé. Em reação aberta, sinalizam que certos artigos da fé não podem ser negociados com a modernidade, por serem essenciais e fundamentais. Dentre as primeiras manifestações encontra-se o manifesto tornado público na Conferência de Niágara sobre a bíblia, em 1985, com a afirmação de doutrinas tidas como essenciais: a inerrância das Escrituras; a divindade de Jesus Cristo e seu nascimento virginal, bem como seu sacrifício expiatório vicário, sua ressurreição corpórea e sua segunda vinda à terra como juiz. A designação do termo e sua maior divulgação ocorreram em seguida, com a publicação de uma série de textos entre os anos de 1909 e 1915, nos Estados Unidos, intitulados The Fundamentals – A Testimonium to the Truth (Os Fundamentais – um testemunho em favor da Verdade). A série de 12 opúsculos, com mais de três milhões de exemplares publicados, foi que deu o nome ao movimento fundamentalista, favorecendo também sua maior divulgação.

Nascia, assim, uma contra-ofensiva fundamentalista a um modernismo em curso no mundo protestante, que estaria interpretando os conteúdos essenciais da fé numa problemática perspectiva histórico-crítica. Em oposição a tal modernismo, firmavam-se conteúdos considerados Fundamentais, ou seja, verdades absolutas e intocáveis, que deveriam estar preservadas dos ares dissolventes da ciência e da relativização moderna. Entre tais conteúdos, os mesmos defendidos pela Conferência de Niagara, incluindo também o criacionismo. Tudo o que pudesse opor-se a tais “fundamentais” nos resultados das ciências modernas, como o evolucionismo biológico, era objeto da resistência fundamentalista. Essa perspectiva foi mais incisiva entre os batistas e os presbiterianos do Norte dos Estados Unidos, tendo depois se espalhado por outros espaços através da aguerrida atividade missionária. Vale também registrar a fundação, em 1941, do Conselho Americano das Igrejas Cristãs, que agrupou segmentos fundamentalistas mais rígidos, e que farão oposição aos organismos ecumênicos.

Algo semelhante ocorreu em âmbito do catolicismo romano, com a oposição do magistério contra os ventos da modernidade. É o caso do sílabo de Pio IX (1864), com a condenação de um elenco de proposições modernas, incluindo o panteísmo, o naturalismo e o racionalismo absoluto. Tornou-se clássica a proposição de número 80, com a condenação de qualquer “negociação cognitiva” com a modernidade: “O Romano Pontífice pode e deve reconciliar-se e fazer amizade com o progresso, o liberalismo e a civilização moderna” (DzH 2980). E igualmente a encíclica de Pio X, Pascendi dominici gregis (1907), em torno dos erros dos modernistas quanto ao conceito de fé, aos enunciados teológicos e aos princípios da ciência histórica e critica (DzH 3475-3500). Enquanto o fundamentalismo protestante invoca a autoridade da bíblia, o fundamentalismo católico, que poderia ser melhor definido como integrismo, recorre à infalibilidade do magistério.

Na base da atitude fundamentalista há uma forte experiência de conversão, suscitada pela experiência imediata com Deus à base da escuta da Palavra. Nada mais atemorizante para eles do que perder esse fundamento seguro, pulverizado pelos ares dispersivos e centrífugos que acompanham a sensibilidade moderna. Em defesa dos motivos de credibilidade partem com vigor ao ataque, seja de forma defensiva, fechando-se nos “muros protetores” de seu grupo, seja de forma ofensiva, avançando numa cruzada contra os “descrentes”. São, em verdade, movidos por uma “necessidade angustiante de certeza”, que pode estar envolvida por problemática espiral de violência. O sentimento vivenciado é semelhante ao de Madalena, na manhã da Páscoa: “Tiraram do sepulcro o Senhor e não sabemos onde o puseram” (Jo 2,2). Uma vez ameaçada, a identidade pode se tornar aguerrida e mesmo mortífera, e muitos são os exemplos que historicamente comprovam um tal risco. O fenômeno do fundamentalismo implica a idéia de uma “tradição sitiada”, de uma identidade ameaçada. Diante do risco globalizador, ele reage com a afirmação tradicional da tradição. Rejeita-se qualquer engajamento dialogal com a modernidade, e busca-se reconstituir um “mundo curado”, livre de surpresas. Os projetos fundamentalistas incluem, assim, a limitação ou mesmo supressão de todo pluralismo e a rejeição de qualquer perspectiva hermenêutica.

(Artigo publicado na Revista Diálogo – Revista de Ensino Religioso, Ano XVII, nº 65, fevereiro/abril 2012, pp. 10-13)