terça-feira, 17 de maio de 2011

Marco Lucchesi: Itinerários

Marco Lucchesi – Itinerários

 

Faustino Teixeira

PPCIR-UFJF

 

Marco Lucchesi acaba de ser eleito para a cadeira de número 15 da Academia Brasileira de Letras (03/03/2011), que tem como patrono Gonçalves Dias. A cadeira vinha antes ocupada pelo padre jesuíta, Fernando Bastos de Ávila, falecido em 06 de novembro de 2010. A posse está marcada para o dia 20 de maio de 2011, na ABL. Marco Lucchesi nasceu no Rio de Janeiro, em 09 de dezembro de 1963. Como  identificou sua amiga Nise da Silveira, o símbolo do sagitário expressa bem a personalidade desse carioca especial: “O Centauro, os pés encravados na Terra, com mãos firmes busca orientar a flecha em direção às estrelas”. Alguém animado pela “nostalgia do mais”, com o coração fincado na terra e o olhar habitado pelo horizonte maior. Um apaixonado pelas línguas, da terra e do céu. Filho único, nasceu sob o embalo bilíngue toscano-carioca. Herdou de sua mãe, Elena Dati, a paixão pelo piano e pelo canto, e nessa ternura filial foi tecendo os traços fundamentais de seu cotidiano. Relata em entrevista que a música foi fundamental para ele, e com ela “a poesia das coisas”.

 

 Em seguida veio o interesse pela literatura e a filosofia, desdobrando-se no amor à poesia. Assinala que sua primeira tradução séria foi a do “Cântico Espiritual”, de João da Cruz, realizada aos dezesseis anos: “Deixei o piano visível (ou quase) pelo piano invisível da poesia...”. E Marco se revelará um tradutor de primeira grandeza. Vale lembrar a impressionante tradução de Baudolino, de Umberto Eco (Record, 2001), inspirada pelas paisagens de Itacoatiara, da Itália e do Irã. Revela que essa tradução foi pontuada pela leveza, mesmo assim, foram cerca de doze versões do primeiro capítulo. Identifica-se como um “tradutor dostoievskiano”, cujo trabalho não tem nada de solar, mas vem acompanhado por muito sofrimento e tortura. Busca sempre “a equivalência impossível. A palavra perdida”. São ilhas irredutíveis. A tradução é para ele “um processo físico tremendo”, fervido em insônias inesgotáveis. Daí ter decidido mudar de perspectiva, e diz: “Resolvi acabar com o tradutor que me habita, antes que ele acabasse comigo”. Mesmo assim, num trabalho realizado em comum, brindou-nos novamente com o seu dom, no livro “O canto da unidade: em torno da poética de Rûmî” (Fissus, 2007 – Prêmio Mario Barata, UBE 2008), com lindas traduções dos Rubayats de Rûmî. Marco traduziu ainda outros poemas de Rûmî (A sombra do amado: poemas de Rûmî, Rio de Janeiro: Fisus, 2000 – Prêmio Jabuti 2001). E também Giambatista Vico (Record, 2000), Primo Levi (Companhia das Letras,1997), Georg Trakl (Topbooks,1996 – Prêmio Paulo Rónai, 1996), Rilke ( Topbooks,1996) e Khliébnikov (Cromos,1993).

 

Como tão bem mostrou o saudoso Antônio Carlos Villaça, Marco Lucchesi é um poeta da sensibilidade. No centro da sua vida está a literatura. É mais do que um erudito tradicional, pois vem temperado pela poesia: “A sua intimidade com a poesia, com a melhor poesia, o salva de si mesmo e do eruditismo”. Os poemas de Lucchesi são magníficos, temperados com a seiva e o vigor da vida:

 

“Um laço misterioso en

laça e desenlaça

umas às outras as palavras

 

atiça e des

atina

o silêncio

das florestas

 

move e dis

persa os pássaros in

visíveis que regem

o sentido das coisas”

 

 As imagens que captam o movimento lírico de sua imaginação são preciosas: as “praias esquecidas”, os “oceanos maravilhas”, a “metafísica das alturas”, os minaretes “ávidos de altura e infinito”, o “mar da divindade”, o “planetário de Deus” e o azul, o profundo e inacabado azul de Isfahan... A emoção nos avizinha quando nos deparamos com a beleza de seus Poemas Reunidos (Record, 2000), bem como de outros poemas recolhidos nos livros  Sphera (Record, 2003) e Meridiano celeste & bestiário (Record, 2006). Nessa última obra tomamos contato com sua companheira, de olhar profundo, Constança, inspiradora de poemas, mas sobretudo da vida.

 

Há também o Marco ensaísta e buscador, que desvenda os desertos e as escarpas da alma. Em belos ensaios revela, com o calor de sua intimidade, encontros memoráveis, como os realizados com Nize da Silveira, Adélia Prado, Naguib Mahfuz, Roger Garaudy e tantos outros. Desce também, com dor, pelos “porões da humanidade” e nos possibilita ver o desolador “deserto da loucura”, dos “rostos desfigurados” e dos “corpos descobertos”; o silêncio doloroso e triste de Canudos: “o mais triste silêncio de minha vida”; e o “mundo esquálido e sombrio” dos refugiados palestinos de Sabra e Chatila, esse “horizonte sem horizonte. Tristeza difusa e sem lágrimas”. Do coração do poeta rasga-se o grito de raiva e compaixão... “A...............lla..................ah! O gemido é um dos nomes de Deus”. Dentre os livros de ensaios: Saudades do paraíso (Lacerda Editores, 1997), O sorriso do caos (Record, 1997), Os olhos do deserto (Record, 2000), Memória de Ulisses (Civilização Brasileira, 2006) e Ficções de um gabinete ocidental. Ensaios de história e literatura (Civilização Brasileira, 2009). Ultimamente, o Marco poeta e ensaísta mostra também o seu dom para o romance, com a obra O dom do crime. Rio de Janeiro/São Paulo, 2010.

 

Marco Lucchesi guarda um carinho especial pelo diálogo das civilizações, e o encontro das religiões. Talvez seja um dos intelectuais brasileiros mais ativos em favor da salvaguarda do islã verdadeiro e de sua profundidade mística. É portador de um grande Jihâd, o da paz universal. Lança-se com coragem em favor de uma nova perspectiva, de um novo olhar sobre o outro, rompendo com a estreiteza e parcialidade que marca a tradicional mirada ocidental, sobretudo com respeito às culturas do Oriente.

 

Seus livros nos trazem a profundidade dos grandes místicos como Hallaj, Attar e Rûmî. Nos ajuda, com eles, a desvendar as melodias escondidas do Mistério sempre maior. Nada melhor do que estar à sombra do Amado. Como diz Rûmî, numa de suas cartas: “Se não posso compreender que árvore é essa, contudo sei que, depois que deitei meu olhar sobre ela, meu coração e minha alma se tornaram frescos e verdes. Vou me colocar a sua sombra”. Na obra de Lucchesi, como assinala Constança, “as fronteiras são desfeitas: culturas diversas se aproximam, inesperadas, num diapasão musical de novas tessituras”.

 

O deserto tem um lugar particular em sua vida: “O corpo do deserto me fere de modo irreversível. Sou habitado por uma paisagem de pedra e areia, pela qual sigo enamorado, e beijo seus lábios de vento e desabrigo”. O deserto e o islã o fascinam, e com eles a suave e áspera língua árabe, “de lâminas e espadas”, das línguas a mais bela, a que mais se aproxima do céu empíreo e do sorriso de Beatriz. Para Marco, “o árabe coagula e condensa, com a força do ferro e o brilho do cristal, a idéia  que emerge do Sagrado”. O seu deserto “revela oásis inesperados, e deve ter sido a língua escolhida por Deus para falar aos homens. Um Deus infinito e áspero. Físico e Metafísico. Amante da Parte e do Todo...”. Contagia-se também com a beleza da estética do Islã, com seus minaretes que anunciam “impossíveis horizontes”. E também seus buscadores de diálogo, como Massignon e Paolo dall´Oglio.

 

O currículo de Marco impressiona. Formado em história pela UFF, é também mestre e doutor em Ciência da Literatura pela UFRJ e pós-doutor em filosofia da Renascença na Universidade de Colônia (Alemanha). Leciona atualmente no departamento de letras da UFRJ e é pesquisador do CNPQ. Tem sob sua responsabilidade a edição de duas importantes revistas: Poesia Sempre (Fundação Biblioteca Nacional) e Tempo Brasileiro. Outra marca de sua formação é o fabuloso conhecimento e domínio de línguas estrangeiras. Um erudito, sem dúvida, mas sem perder jamais a ternura e a humildade, dois de seus mais preciosos valores. Aquela linda casa, na Rua dos Cravos, em Itacoatiara (Niterói) guarda um coração generoso e hospitaleiro. Ali bate forte o dom da música e da poesia, que facultam um “cerco de paz” e possibilitam a cidadania da alegria e da esperança.

 

Referências Bibliográficas

 

LUCCHESI, Marco. A paixão do infinito. Niterói: Cromos, 1994.

LUCCHESI, Marco. O sorriso do caos. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 1997.

LUCCHESI, Marco. Saudades do paraíso. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1997.

LUCCHESI, Marco. Poemas reunidos. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2000.

LUCCHESI, Marco. Os olhos do deserto. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2000.

LUCCHESI, Marco. A sombra do Amado. Poemas de Rûmî. Rio de Janeiro: Fisus, 2000.

LUCCHESI, Marco. Viagem à Florença. Cartas de Nise da Silveira a Marco Lucchesi. Rio de Janeiro: Rocco, 2003.

LUCCHESI, Marco. Sphera. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2003.

LUCCHESI, Marco. A memória de Ulisses. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

LUCCHESI, Marco. Meridiano celeste & Bestiário. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2006.

LUCCHESI, Marco. Ficções de um gabinete ocidental. Ensaios de história e literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.

LUCCHESI, Marco (Org). Caminhos do islã. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2002.

LUCCHESI, Marco & TEIXEIRA, Faustino (Orgs). O canto da unidade. Em torno da poética de Rûmî. Rio de Janeiro: Fissus, 2007.

 

Entrevistas:

 

Marco Lucchesi no paiol literário. Rascunho. O jornal de literatura do Brasil. Curitiba, 12 de abril de 2011:

http://rascunho.rpc.com.br/index.php?ras=secao.php&modelo=2&secao=45&lista=0&subsecao=0&ordem=2285&semlimite=todos (acessado em 12/04/2011)

 

Entrevista: Marco Lucchesi:

www.periodicos.ufsc.br/index.php/traducao/article/dowload/5686/5186 (acessado em 12/04(2011)

 

Bety ORSINI. Acordes literários. Caderno Ela, p. 4. O Globo, 02 de abril de 2001.


(A ser publicado na Revista Teoliterária: Revista Brasileira de Literaturas e Teologias)

 

 

 

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Paulo Dall´Oglio e a espiritualidade no mundo muçulmano

Paolo Dall´Oglio e a espiritualidade no mundo muçulmano

 

Faustino Teixeira

PPCIR-UFJF

 

O recente e premiado filme “Homens e deuses”, de Xavier Beauvois, sobre os monges trapistas de Tibhirine, na Argélia, colocou em cena o caminho trilhado por muitos buscadores do diálogo, em particular com o islã. São muitas e ricas as experiências que se encontram em curso no tempo atual, com relatos impressionantes sobre a vocação de hospitalidade cristã no mundo muçulmano. São buscadores que seguem a preciosa trilha de Charles de Foucauld e Louis Massignon. Nesses últimos anos saíram publicadas duas singulares obras sobre o itinerário de Paolo Dall´Oglio, um jesuíta que vem consagrando sua vida ao diálogo fraterno com o islã: Guyonne de Montjou. Mar Moussa. Un monastère, un homme, un désert. Paris: Albin Michel, 2006; Paolo Dall´Oglio. Amoureux de l´islam, croyant en Jésus. Yvry-sur-seine: Les Éditions de l´Atelier, 2009 (com prefácio de Régis Debray) .

 

Paolo Dall´Oglio nasceu em Roma, no ano de 1954. Entrou para os jesuítas em 1975 e teve sua formação em línguas e civilização oriental no Instituto Universitário Oriental de Nápoles, bem como na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, onde finalizou seu doutorado em missiologia, em 1990, publicando sua tese em seguida: Speranza nell´islâm. Interpretazione della prospettiva escatologica di Corano XVIII. Genova: Marietti, 1991. Sua vocação mais profunda não estava, porém, voltada para a vida acadêmica. Um chamado mais forte vinha do deserto, do desafio de vida e comunhão com o mundo muçulmano. Os primeiros sinais dessa vocação nasceram fortuitamente, quando em viagem ao Oriente, em 1982, descobriu num velho guia turístico da Síria a existência de um mosteiro cristão abandonado no meio do deserto. A atração foi imediata, e um novo caminho descortinou-se para o jovem jesuíta. Tratava-se do Mosteiro de São Moisés o Abissínio (Deir Mar Musa el-Habashi). O mosteiro encontrava-se sob os cuidados da eparquia sírio-católica de Homs, Hama e Nebek, mas estava em ruínas. Sob o impulso de Paolo Dall´Oglio, com a ajuda do governo sírio, da Igreja local e de um grupo de voluntários, procedeu-se sua restauração, iniciada em 1984.

 

Ali, naquele ermo incrustado na rocha, às margens do deserto, nasce a comunidade mista al-khalil (“o amigo de Deus”), um título bíblico e corânico aplicado a Abraão. A regra da confederação monástica, aprovada pelo Vaticano em 2006, indica três prioridades básica e um horizonte específico. Dentre as prioridades, a vida contemplativa, o empenho no trabalho manual e a hospitalidade abraâmica. Quanto ao horizonte almejado, a particular consagração ao amor de Jesus Redentor para os muçulmanos e a comunidade (Umma) muçulmana. Em síntese, uma comunidade integralmente voltada para o diálogo interreligioso. A comunidade conta hoje com dez pessoas. Além de Paolo Dall´Oglio, que é o prior, comungam também da experiência: Jacques, Houda, Jihad, Jens, Boutros, Dima, Yussef, Dany e Diane. Há que sublinhar a profunda amizade que liga Paolo a Houda, das primeiras monjas que entrou para a comunidade. Depois de perder o marido de forma violenta num acidente de carro, encontrou a acolhida espiritual em Mar Musa. Paolo fala do misterioso amor que se firmou entre os dois, “grande como o mosteiro e todos os desertos”. Sobre ele falou: “Houda ensinou-me a amar mais profundamente. E eu a ensinei a amar a todos. Aprendemos a nos amar numa casta nupcialidade. Fomos consignados à relação com Deus, que nos convoca continuamente ao outro, como para o próprio espelho”.

 

A comunidade assumiu o rito sírio-católico como forma de melhor se inculturar entre os muçulmanos. Foi igualmente uma forma de reatualizar o monaquismo oriental que o islã conheceu e respeitou desde o século VII. Foram razões dialogais que motivaram essa adesão: tanto a oração como a liturgia siríacas vinham marcadas pelo mesmo ritmo da espiritualidade muçulmana. Adotou-se também o árabe como língua comunitária. Sobre essa decisão argumenta Paolo: “Aqui falamos a língua do Corão; somos uma igreja que tem mais de quinze séculos e falamos a língua sagrada e litúrgica de todo o islã... porque o islã é uma religião que tende integralmente para a Verdade, e é aqui que se encontra com nós cristãos”. Para os muçulmanos, a língua árabe é como a hóstia para os cristãos, é “carne da revelação corânica”, o “ditado sobrenatural” que evidencia e cristaliza o Deus único.

 

Num país de grande maioria muçulmana, com 75% de muçulmanos sunitas e um pouco mais de 10% de muçulmanos xiitas, a presença de uma comunidade cristã aberta ao diálogo ganha um significado precioso. O outro aparece aqui como um “caminho de acesso ao mistério”. O segredo e vitalidade da comunidade de Mar Musa está nessa abertura gratuita, no dom da hospitalidade. Seguindo a trilha de Massignon, Paolo Dall´Oglio busca fazer de Mar Musa uma comunidade de pessoas que se oferecem ao outro. Retoma-se a inspiração da badaliya, que significa “substituição”. É um termo que deriva da expressão árabe abdâl (abdâl é o plural de badal). Os abdâl são como os santos muçulmanos desconhecidos, os bons muçulmanos, marcados por uma espiritualidade do cotidiano. Eles são escolhidos por Deus para “cicatrizar as feridas do mundo mediante o dom de si mesmos, através da paciência, da humildade, do silêncio e da pequenez assumida com amor”.

 

A ousadia dialogal dessa experiência comunitária provocou mal entendidos e desconfiança entre determinados segmentos da comunidade católica, que viam o risco do sincretismo. Coloca-se também a questão da “dupla pertença” defendida pelo prior da comunidade. Ele, porém, justifica:

 

“Vivo a minha relação com o islã como uma espécie de pertença. Mas sejamos claros, a minha fé cristã não vem jamais camuflada ou diminuída por tal pertença; ao contrário, ela quer ser ortodoxa, total e fiel à sua dinâmica específica. Quando digo que pertenço ao islã, quero dizer que do ponto de vista cultural, linguístico e simbólico, sinto-me profundamente em casa no mundo muçulmano”.

 

Paolo assinala que é sua relação pessoal com Jesus de Nazaré e o amor à Igreja que garantem a tranquilidade de sua pertença cristã. E acrescenta que se tal vínculo não existisse já se teria convertido ao islã. Marco Lucchesi, que visitou a comunidade de Mar Musa, e com ela se encantou, descreve a posição de Paolo Dall´Oglio, que é uma das razões que garantem a ousadia dialogal: “Abrimo-nos profundamente à religião muçulmana e à sua civilização, em virtude da tranquilidade de nossa fé em Cristo, e não por uma dúvida a seu respeito” (M.Lucchesi. Os olhos do deserto. São Paulo: Record, 2000, p. 57).

 

Paolo Dall´Oglio defende uma inculturação guiada pela “hermenêutica do amor”. Vê a Igreja como uma comunidade em movimento, sempre operada pela ação inusitada do Espírito, que abre caminhos singulares de seguimento. O caminho dialogal não se deixa perder por meras assimilações recíprocas ou equívocas misturas, mas volta-se para um “horizonte condiviso sobre o qual projetam-se sínteses capazes de pluralismo na comunhão”. Na comunidade de Mar Musa ocorre a partilha de experiências interreligiosas. Mas Paolo não desconhece, por exemplo, a complexidade que envolve a oração interreligiosa. Admite a existência de níveis diversos que regem o culto em comum. Há momentos que se permitem intercessões comuns e a recordação de Deus ( dhikr); mas outros que guardam uma peculiaridade identitária, própria de cada particularidade, como as orações litúrgicas cristãs ou muçulmanas. E também um nível misterioso, operado pelo Espírito, que convoca lábios e corações a uma invocação partilhada.

 

Exemplificando um traço dessa peculiaridade interreligiosa, Paolo Dall´Oglio relata uma situação vivida no diálogo com um amigo sufi. Busca aconselhar-se com o amigo sobre um rapaz muçulmano que acorrera ao mosteiro buscando a conversão cristã. E indaga sobre qual melhor decisão tomar. Em sua resposta, o amigo sufi simplesmente assinala: “O Senhor o enviou, tu deves guiá-lo com sinceridade do coração”. Em seguida, o amigo sufi encaminha-se para as abluções preparatórias para a oração, uma vez que a noite se anunciava, e convida Paolo para fazer o mesmo. Seguindo um caminho inusitado, Paolo fecha os olhos e se volta para o Gólgota, lavando-se com a água que saía do flanco do Senhor. Depois de feitas suas abluções, o amigo sufi convida Paolo para fazer o mesmo e ele responde: “Já o fiz”. Os dois partilham com intensidade suas orações. Ao final, o amigo pergunta a Paolo sobre o local em que fez suas abluções. E ele responde: “Em Jerusalém, nos pés da cruz”. E amigo conclui: “Compreendo, a tua oração é legítima”.

 

O que anima a vida e a prática da comunidade de Mar Musa, e de Paolo Dall´Oglio, em particular, é o respeito ao outro. Não pode haver diálogo fora dessa dinâmica de atenção, acolhida e respeito à alteridade. É verdade que os cristãos buscam a unidade, uma unidade que está sendo a cada momento construída, mas também os muçulmanos vivem em profundidade essa experiência de unidade. Num congresso sobre ecumenismo, ocorrido em Damasco, Paolo assinalou que aqueles que não amam a unidade dos muçulmanos não podem nem compreender nem amar a unidade dos cristãos: “Um cristão que não ama ver os muçulmanos unir-se entre si não pode desejar a unidade na própria religião. A unidade não se divide. Ou se ama a unidade para todos, ou não se ama a unidade”. Para Paolo, esconde-se misteriosamente em toda a diversidade das religiões uma sabedoria de Deus, que acolhe com alegria o sussurro do plural. É alguém que acredita no diálogo em profundidade: “Tenho confiança no fato de que, mediante o diálogo, a Igreja descobrirá a atividade do Espírito nas outras tradições, compreenderá o ato consumado por Deus naquela revelação polêmica que o islã representa na história da humanidade”.

 

Em sua visita à grande mesquita  de Damasco, dos Omíadas, em 2001, o papa João Paulo II veio acompanhado por monges de Mar Musa, entre os quais Paolo Dall´Oglio. Nessa ocasião Paolo dirigiu-lhe as seguintes palavras: “Santo Padre, há dezoito anos, na chiesa del Gesù, em Roma, abençoastes minha vocação ao diálogo. Ofereço-lhe agora o fruto dessa bênção: uma comunidade monástica, consagrada ao diálogo islamo-cristão”. Com o olhar voltado para o grupo, o papa alçou suas mãos e abençoou a todos. Como tão bem sublinhou o poeta Marco Lucchesi, esse mosteiro no deserto, que abriga buscadores tão especiais, é uma luz que se avista de longe e que ilumina o coração. É uma parada obrigatória no curso de nossa peregrinação, “na qual Deus se torna nosso hóspede e nos tornamos hóspedes de Deus”.

 (Publicado no Portal da Amai-vos em 05/05/2011)