quinta-feira, 9 de setembro de 2010

A presença dos espíritos no imaginário da sociedade brasileira

A presença dos espíritos no imaginário da sociedade brasileira

 

Faustino Teixeira

Entrevista ao IHU Online

 

 

1. Como explicar a presença e aceitação do espiritismo num país de marcada presença católica ?

 

O campo religioso brasileiro vem sofrendo mudanças substantivas nas últimas décadas. O catolicismo vai perdendo aos poucos sua tranquila hegemonia, tendo que conviver com uma dinâmica religiosa marcada pela presença crescente dos pentecostais e dos “sem religião”. Um fenômeno recorrente a partir dos anos 1980 é o “trânsito religioso”. Pesquisas realizadas por Ronaldo de Almeida, indicam que uma em quatro pessoas mudou de religião no Brasil nos anos 1990 e uma em cada três na Grande São Paulo, nos anos 2000. Outra pesquisa realizada em 1994, desenvolvida pelo ISER, sobre a presença dos evangélicos, apontou que “cerca de 70% dos evangélicos do Grande Rio não nasceram, nem foram criados num lar evangélico. Entraram na igreja por adesão voluntária, rompendo com a religião dos pais”. A pesquisa constatou que a maior parte desses evangélicos vieram do catolicismo (61%), que é o maior “doador” de fiéis, e em seguida aparece a umbanda ou candomblé (16%) e o espiritismo kardecista (6%). Os dados do ultimo Censo IBGE (2000) indicam que o catolicismo ainda responde por 73,8% da declaração de crença. Trata-se, porém, de um catolicismo marcadamente plural. Como assinala Carlos Brandão, o nosso catolicismo é uma religião que abraça a diversidade e possibilita diversas alternativas de viver a crença e a fé. Uma religião “em que Deus pode ter muitos rostos”. Pierre Sanchis vai ainda mais longe, ao afirmar que “há religiões demais nesta religião”. A plasticidade é uma marca característica da religião no Brasil. Como diz o personagem Riobaldo Tartarana, no Grande Sertão: Veredas,

 

“Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio… Uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue. Rezo cristão, católico, embrenho a certo; e aceito as preces do compadre meu Quelemém, doutrina dele, de Cardéque. Mas, quando posso, vou no Mindubim, onde um Matias é crente, metodista: a gente se acusa de pecador, lê alto a Bíblia, e ora, cantando hinos belos deles. Tudo me quieta, me suspende. Qualquer sombrinha me refresca”.

 

Estudiosos e observadores do campo religioso no Brasil destacam a presença de uma “impregnação espírita”, ou “querela dos espíritos” na sociedade brasileira que escapam à percepção do Censo. O Censo de 2000 indicou que a declaração de crença espírita envolve cerca de 1,4% da população, em torno de 2.337.432 adeptos. Mas não há dúvida de que o “imaginário espírita” tem uma abrangência muito maior. Em entrevista concedida ao IHU On-Line (nº 169 – dezembro de 2005), Bernardo Lewgoy sublinhou a “alta ressonância social” das crenças espíritas no Brasil, que escapa de sua vinculação exclusiva aos centros espíritas. Para ele “o kardecismo é um caso de importância qualitativa muito superior à quantitativa”. Vale também lembrar que o povo brasileiro tem uma familiaridade particular com os “espíritos”. Como assinala com razão o antropólogo José Jorge de Carvalho, “são dezenas de milhões de brasileiros que entram em transe regularmente, recebem entidades ou estabelecem relações personalizadas (de perturbação ou apoio) com a mais variada gama de espíritos”. E deixar-se habitar pelos “espíritos” é também fator de afirmação de uma dignidade singular, de intensificação da qualidade do ser sujeito, como mostrou Roger Bastide em sua bela reflexão sobre a dança dos deuses:

 

“Não são mais costureirinhas, cozinheiras, lavadeira que rodopiam ao som dos tambores nas noites baianas; eis Omolu recoberto de palha, Xangô vestido de vermelho e branco, Iemanjá pentenando seus cabelos de algas. Os rostos metamorfosearam-se em máscaras, perderam as rugas do trabalho cotidiano, desaparecidos os estigmas desta vida de todos os dias, feita de preocupação e de miséria; Ogum guerreiro brilha no fogo da cólera, Oxum é toda feita de volúpia carnal. Por um momento, confundiram-se África e Brasil; aboliu-se o oceano, apagou-se o tempo da escravidão (…). Não existem mais fronteiras entre natural e sobrenatural; o êxtase realizou a comunhão desejada”.

 

A forma de viver a religiosidade no Brasil é bem mais alargada do que aquela declarada no Censo. Há no Brasil o fenômeno recorrente da dupla pertença. Em pesquisa realizada por Luiz Eduardo Soares e Leandro Piquet Carneiro, em 1990, por solicitação e patrocínio do Centro João XXIII (IBRADES), com base nos dados do Gallup, constatou-se que 46% dos católicos praticantes acreditam na reencarnação. Dado também confirmado por outra pesquisa realizada no mesmo ano na Arquidiocese de Belo Horizonte. Em levantamento feito com paroquianos de frequência regular nas missas da Arquidiocese, com aplicação de 270.000 fichas, verificou-se que 54,8% dos entrevistados declararam acreditar na reencarnação.

 

2. Há ainda outros elementos que ajudam a compreender essa aproximação ?

 

Não há como tratar dessa familiaridade que aproxima a tradição espírita do catolicismo, bem como da receptividade peculiar que a tradição kardecista vem alcançando no Brasil, sem assinalar a sua interface com o catolicismo. Como mostrou José Jorge de Carvalho, “o espiritismo é também cristão ou neo-cristão, na medida em que reintroduz, revaloriza noções cristãs tais como a de caridade. Ele não só ressemantiza aspectos do cristianismo como introduz o mundo dos espíritos de uma forma agora muito mais ampla, complementando a doutrina equivalente praticada pelas tradições esotéricas e pelas religiões afro-brasileiras”. Alguns pesquisadores que se dedicam ao estudo do espiritismo no Brasil, como Bernardo Lewgoy e Sandra Stoll, falam de um “ethos católico do espiritismo brasileiro”. O exemplo mais claro disso é a presença de Chico Xavier. Em seu livro sobre o espiritismo à brasileira (2003), Sandra Stoll assinala que “esse modo católico de ser espírita, concretizado por Chico Xavier através do exemplo de vida, parece ser responsável, em larga medida, pela transformação dessa que era uma doutrina estrangeira em religião integrante do ethos nacional. Da moda de salão, da atividade de cunho terapêutico, o Espiritismo passou a integrar o imaginário brasileiro”. Esse imaginário vem reforçado por uma impressionante literatura espírita e sua presença nos meios de comunicação social, particularmente nas telenovelas de caráter espírita. Só Chico Xavier contribui com mais de 400 livros psicografados, em 70 anos de produção. Para Sandra Stoll, “num momento em que a inserção na mídia, em especial a televisão, se destaca como fator de divulgação doutrinária, constituindo um novo campo de disputa no espaço público, o Espiritismo vem allargando sua inserção social, especialmente entre os segmentos de classe media, por meio de investimento no campo literário”. Vale também ressaltar o sucesso de bilheteria de filmes como “Chico Xavier” e o mais recente, “Nosso lar”.

 

3. Comentar as perseguições que os cultos de origem africana sofreram a partir da proclamação da república, cuja inspiração positivista os via como motivo de atraso e por isso tentou proibí-los, inclusive pela força da lei. 

 

Em clássico artigo publicado na revista Religião e Sociedade, de março de 1986, a antropóloga Yvonne Maggie aborda a questão da repressão sofrida pelas religiões mediúnicas no Brasil, e o faz por intemédio de pesquisa realizada nos arquivos de processos judiciais instaurados para julgar acusados de práticias ilegais de medicina, curandeirismo e magia. Serve-se em particular do decreto 847 da Código Penal de 1890, o primeiro grande conjunto de leis a reger a nova ordem juridical associada ao nascente regime republicano. O artigo 157 prescreve prisão e multa para aquele que “praticar o espiritismo, a magia e seus sortilégios, usar de talismãs e cartomancias, para despertar sentimentos de ódio ou amor, inculcar cura de moléstias curáveis ou incuráveis, enfim, para fascinar e subjugar a credulidade pública”. Estava, assim, configurado um “medo do feitiço”. Esse tema foi também objeto da dissertação de mestrado de Emerson Giumbelli, depois publicada em livro: “O cuidado dos mortos. Uma história da condenação e legitimação do Espiritismo” (1995). Em seu trabalho, Giumbelli destacou que as ações policiais e os processos judiciais contra grupos filiados à doutrina de Kardec antecedem ao Código Penal de 1890, e indica referências a isso já em 1881.

 

4. Por que o espiritismo antes tão condenado pela igreja católica, agora passou a ser perseguido pelas núcleos neopentecostais?

 

O Brasil foi sempre reconhecido como o país do sincretismo religioso, pela rica capacidade de ressemantização das identidades religiosas, mediante processos de relações e aprendizados com os diferentes. Nas últimas décadas temos verificado, com preocupação, expressões crescentes de exclusivismo religioso, com toques de “beligerância iconoclasta”. Em 1995 teve o triste episódio, conhecido como “chute na santa”. Mais recentemente atearam fogo na imagem de Santo Expedito, no interior de São Paulo (Ourinhos). Exercícios de intolerância religiosa ocorrem em templos neopentecostais e mesmo em circuitos da renovação carismática católica. No livro do bispo Macedo, Orixás, caboclos e guias, com inúmeras edições, busca-se identificar o apoderamento do demônio com a participação direta ou indireta nos centros espíritas ou com os trabalhos realizados pelas tradições religiosas afro-brasileiras. Não muito distante, temos também a linguagem etnocêntrica e excludente do padre Jonas Abib, da Canção Nova, em seu livro Sim,sim, Não, não, com mais de 400 mil exemplares vendidos, e que provocou intensa reação na Bahia. Sobretudos algumas igrejas pentecostais que se firmam a partir década de 1970, dando ênfase ao tema da libertação e do exorcismo, os adversários simbólicos são bem definidos: sobretudo as religiões afro-brasileiras, e de forma mais ampla, as crenças que compõem o repertório “católico-afro-kardecista”, povoado por  santos, energias, espíritos, promessas, trabalhos, feitiços etc. Na já mencionada pesquisa realizada pelo ISER em 1994, sobre os evangélicos no Grande Rio, verificou-se que eles “se percebem como militantes de um grande confronto espiritual. 89% acreditam na existência de religiões demoníacas”.  Nas respostas dos evangélicos entrevistados, 95% atribuem este caráter à Umbanda e ao Candomblé; 83% ao Espiritismo Kardecista; 52% ao ateísmo e 30% ao Catolicismo.  A demonização é palavra corrente nos livros doutrinais, nos cultos e rituais desses núcleos neopentecostais e, em especial, da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). Mas curiosamente, como mostrou Ronaldo de Almeida, em trabalho sobre a guerra das possessões, a IURD acaba elaborando uma “antropofagia da fé inimiga”. Por mecanismos singulares de “fagocitose religiosa” acaba assimilando traços essenciais das crenças que são combatidas. 

(Publicado no IHU-Notícias de 09/09/2010)