quarta-feira, 26 de maio de 2010

Christian de Chergé, mártir de Tibhirine

Christian de Chergé,  mártir de Tibhirine

 

Faustino Teixeira

 

A vida e o testemunho da comunidade dos monges trapistas de Tibhirine, do Atlas da Argélia, ganham visibilidade com a recente premiação em Cannes do filme do cineasta Xavier Beauvois, Des hommes et des Dieux (Homens e Deuses). Trata-se de uma obra prima, saudada com fortes aplausos por um público emocionado. O filme conquistou  com louvor, o Grande Prêmio do Júri, e também o prêmio do Júri Ecumênico do prestigioso Festival cinematográfico de Cannes. Em entrevista publicada no jornal francês La Croix (18/05/2010), o diretor do filme relata a sua emoção ao registrar a vida comunitária dos monges trapistas nos três anos que precederam o seqüestro e morte de sete deles, em 1996. Numa conversa com um dos sobreviventes do massacre, o irmão Jean Pierre, o cineasta desperta para a vitalidade de seu projeto. Relata que estava diante de um “homem santo” animado por um sorriso de bondade: “Contemplar seu sorriso me encorajou a entrar nessa aventura, para propagar sua mensagem”. O resultado é fascinante. Uma obra que traz à baila o “espírito de Tibhirine”, uma mensagem de amor universal ao outro, de compromisso de vida, de dom gratuito, hospitalidade e solidariedade. Envolvidos no coração da tormenta Argelina e expostos ao duro espiral de violência, os monges de Tibhirine são provocados a viver em profundidade a vocação assumida, de viver o compromisso cristão e dialogal em terras do islã.

O prior da comunidade de Tibhirine, Christian de Chergé, foi um dos mártires do massacre de 1996. Em recente livro publicado na França em 2009, Christian Salenson busca traçar o rico perfil de sua vida e de seu testemunho: Christian de Chergé. Une théologie de l´esperance. Paris: Bayard, 2009. Com base nessa obra, vamos buscar aqui destacar alguns traços fundamentais que marcaram o trajeto vital de Christian de Chergé e o trabalho exercido junto aos monges de Tibhirine.

 

O mosteiro de Tibhirine, também conhecido como Notre Dame de l´Atlas, foi fundado em 1938 e torna-se abadia em 1947. A entrada de Christian de Chergé se dá no ano de 1971. Ele tinha se ordenado padre em Paris, no ano de 1969. Entra no mosteiro com uma sólida formação teológica, adquirida no Instituto Católico de Paris (de 1956 a 1964), aperfeiçoada posteriormente no Pontifício Instituto de Estudos Árabes (PISAI) em Roma (de 1972 a 1974). A passagem por Roma foi decisiva para a afirmação de um novo olhar sobre o islã. Beneficiou-se do ensinamento de grandes mestres como Robert Caspar e Maurice Boormans.

A situação na Argélia vinha se complicando desde a década de 1970, com a emergência de núcleos islamistas radicais no campo social. Estava em curso um projeto de criação de um Estado islamista, com importantes núcleos de apoio nas mesquitas, escolas e universidades. Firma-se o Fronte Islâmico da Salvação (FIS), com a intenção de moralizar a sociedade mediante o cumprimento restrito da Lei islâmica (Chari´a). Nas eleições municipais de junho de 1991 o FIS garante a vitória no primeiro turno. O processo vem interrompido com a intervenção da armada argelina, que interrompe o processo eleitoral e acirra assim o conflito com a guerrilha islamista. Os atentados vão se multiplicar no período. Em dezembro de 1993 os grupos islamistas vão obrigar os estrangeiros a deixarem o país e muitos o fazem. Outros, porém, decidem permanecer, e as conseqüências foram drásticas. Em testemunho pessoal sobre a atuação da igreja católica na Argélia, o arcebispo local, Mgr Teissier, fala do sofrimento vivido no ocasião, em decorrência da crise islamista. Nada menos do que 10% dos padres, religiosos e religiosas da diocese da Argélia foi exterminado, num total de dezenove mortes. A violência atingiu ainda mais largamente o povo argelino, ceifando cerca de 150.000 pessoas.

 

É nessa situação de instabilidade e precariedade que se insere a comunidade de Tibhirine. Em duros anos de tormenta os monges debateram-se no difícil dilema: sair ou permanecer na Argélia. Apesar dos inúmeros conselhos dados, incluindo os do Abade Geral da ordem dos trapistas, Dom Bernardo Oliveira, e de Mgr Teissier, arcebispo da Argélia, os monges resolveram permanecer. A saída seria para eles  a ruptura de um laço de amizade com o povo argelino, construído ao longo de muitos anos de rica convivência. Em passagem de seu testamento, datada de dezembro de 1993, Christian de Chergé assinala: “Se algum dia me acontecesse – e isso poderia acontecer hoje – ser vítima do terrorismo que parece querer abarcar agora todos os estrangeiros que vivem na Argélia, eu gostaria que a minha comunidade, a minha Igreja, a minha família, se lembrassem de que a minha vida estava entregue a Deus e a este país. Que eles soubessem que o Único Mestre de toda a vida não me abandonaria nesta brutal partida”. No final de 1993, doze croatas cristãos são assassinados, ali mesmo nas proximidades do mosteiro. Outras nove mortes envolvendo padres e religiosos/as acontecem nos anos de 1994 e 1995. Tudo indicava que chegaria a vez dos monges trapistas. E isto ocorre em março de 1996, quando sete membros da comunidade são seqüestrados pelo Grupo Islâmico Armado (GIA) e levados para as montanhas da redondeza. São eles os freis Christian, Bruno, Célestin, Christophe, Luc, Michel e Paul. Em maio de 1996, chega a notícia do assassinato coletivo.

 

Para entender as razões que moveram os monges trapistas a tal compromisso de radicalidade, a ponto de doarem a própria vida, é necessário tratar a questão da força da experiência espiritual que movia o grupo, e de modo muito particular o prior da comunidade, Christian de Chergé. Em suas homilias, cadernos e escritos, que vão aos poucos tornando-se acessíveis, verifica-se a afirmação de uma sólida vocação em favor do outro, em particular do irmão muçulmano. Ele relata algumas experiências fundadoras nessa sua dinâmica vocacional, como o encontro com o guarda campestre, Mohammed, durante a guerra da Argélia, com o qual estabeleceu profundos laços de solidariedade. Foi alguém que deu sua vida para proteger Christian, e isto ele jamais esqueceu. Relata o caso para mostrar os riscos sobre as generalizações superficiais feitas sobre o islã: “Eu posso dizer que um muçulmano deu sua vida por mim” e esse dom impede qualquer generalização sobre essa tradição religiosa; e mais ainda, significa um gesto que se traduz como apelo a se ligar ainda mais fortemente ao povo da Argélia. De forma semelhante à conversão de Louis Massignon, um evento específico envolvendo um irmão muçulmano, serve de base para uma engajamento positivo de amor para com o outro. Um outro acontecimento lembrado por Christian, envolve também a presença de um irmão muçulmano, com o qual estabeleceu uma experiência de oração em comum. Por fim, lembra também a importância de um encontro que teve com o emir Sayah Attiyah, em 24 de dezembro de 1993, que acabou reforçando nele e na comunidade o desafio de abrigar o dom total de si.

 

O traço peculiar da vida e ação de Christian de Chergé encontra-se no campo da espiritualidade. O seu trabalho foi marcado por uma experiência novidadeira de abertura e aprofundamento dialogal com o outro muçulmano. O toque de sua percepção do diálogo interreligioso não estava fixado no âmbito teórico ou acadêmico, mas da experiência espiritual. Na trilha aberta por Charles de Foucault e Louis Massignon, foi também alguém que se deixou habitar e transformar pelo encontro com o islã. Dentre suas iniciativas nesse campo encontra-se  a fundação do Lugar da Paz (Ribât al Salâm), um pequeno mas substantivo grupo voltado para a afirmação de uma experiência de oração e experiência comum vinculando cristãos e muçulmanos.  A idéia nasceu em 1979 e foi se firmando ao longo do tempo, e o mosteiro de Tibhirine foi o seu espaço de hospitalidade espiritual. Um dos parceiros desse empreendimento foi Mgr Claude Rault, hoje bispo de Laghouat, que relata a riqueza da experiência em seu livro Désert, ma cathédrale (Desclée de Brouwer, 2008). A seu ver, o Lugar da Paz significou “uma experiência de fraternidade espiritual vivida no seio da Igreja e no seio do islã entre parceiros cristãos e muçulmanos”. A intenção era viver a vocação religiosa como proximidade aos amigos muçulmanos, gente simples que vivia “uma grande familiaridade com Deus e um amor concreto para com o próximo”. Os primeiros companheiros muçulmanos que participaram da experiência vieram da confraria muçulmana sufi Alawiya. Já viviam a vocação específica de uma vida de oração no coração mesmo do islã, e encontraram acolhida entre os participantes do Ribât. Eles diziam que seu interesse não estava voltado para um diálogo dogmático ou teológico, travado por tantas barreiras, mas para uma experiência viva de unidade, centrada na oração: “Nós nos sentimos atraídos à unidade. Desejamos deixar Deus criar entre nós alguma coisa de novo. E isto não pode ocorrer senão na oração. Por isso quisemos partilhar esse encontro de oração com vocês”.

 

Em discurso pronunciado aos muçulmanos das Filipinas, em 1981, o papa João Paulo II insistia na experiência da fraternidade entre muçulmanos e cristãos e dizia que os cristãos necessitam do amor dos muçulmanos, e essa era uma condição importante para a realização de uma paz verdadeira. Christian de Chergé gostava de citar essa passagem, para ele inspiradora da experiência do Ribât. Trata-se de um caminho privilegiado para o diálogo interreligioso, centrado na oração e na contemplação. O objetivo era favorecer a possibilidade de um exercício maior de conhecimento e amor do outro, mediante a escuta atenta do Mistério de Deus. Para Christian, a presença dos Alawis proporcionou o exercício da humildade, peça essencial para qualquer diálogo interreligioso. O diálogo requer respeito, cortesia e delicadeza, não só em razão de sua natureza mesma, mas igualmente como expressão de possibilidade de percepção da fé do outro como um dom de Deus. E a oração em comum abre esse caminho singular. Trata-se de um “espaço privilegiado”, no qual “Deus pode inventar algo de novo”, um espaço onde o Espírito Santo “faz o seu trabalho”.

 

A rica experiência do Ribât proporcionou a seus participantes a consciência de um sentido mais elevado da oração, entendida como a “elevação do coração para a Fonte de todo bem”. Na verdade, todos sentiam-se envolvidos por um mesmo laço de fraternidade, banhados pelo amor de Deus. Todos sentiam-se como “buscadores de Deus” e solidários com os amigos. Mas essa solidariedade provocou irritação e ira, como é comum entre aqueles que amam em profundidade. Os que mais amam são aqueles que mais atraem resistência e oposição. Muitos dos membros do Ribât viveram a experiência pascal da violência mortal, como relata Mgr Claude Rault em seu livro. Christian de Chargé sublinhava que a raiz árabe da palavra mártir (shouhada) tem a ver com a profissão de fé muçulmana (shahâda).

 

Em passagem de correspondência com um amigo, ainda inédita, Christian resumiu de forma precisa o sentido de sua missão: “Parece-me que o Espírito quer a todo preço abater os muros de nossos cerceamentos fáceis e nos deixar com as mãos nuas, o coração aberto, prestes a acolher e a doar, a deixar o Cristo cumprir sua passagem, sua Páscoa (...). Disponibilidade a Deus e ao outro diferente que deixa escancarado e aberto o caminho do Amor, ou seja, do futuro comum”.

(Publicado no Portal Amai-Vos - 26 de maio de 2010)

terça-feira, 25 de maio de 2010

Louis Massignon: a hospitalidade dialogal

Louis Massignon: a hospitalidade dialogal[1]

 

“Pour comprendre l´autre,

il ne faut pas se l´annexer,

mais devenir son hôte”

 

 

Faustino Teixeira

PPCIR-UFJF

 

 

Resumo: O diálogo inter-religioso apresenta-se hoje como um dos grandes desafios do século XXI, sendo caminho essencial para a afirmação de um horizonte de paz para a humanidade. Trata-se de uma das artes mais difíceis e arriscadas da conversação, mas essencial na construção de uma cidania que respeite a alteridade. O objetivo desse artigo é apresentar a trajetória de um dos grandes interlocutores do diálogo entre cristianismo e islã, Louis Massignon (1883-1962), um pioneiro na abertura da igreja católica ao mundo muçulmano. Com sua perspectiva de vida e reflexão favoreceu um novo olhar sobre o islã, esse mundo religioso que envolve hoje cerca de uma em cada cinco pessoas do mundo.

 

Palavras-Chave: Diálogo, Cristianismo, Islã, Mística, Hospitalidade.

 

Introdução

 

Louis Massignon (1883-1962) foi um grande buscador no campo do diálogo inter-religioso, com sua particular vocação de abertura ao islã. É reconhecido como um dos singulares conhecedores do islã e dos árabes, sendo responsável pela renovação dos estudos de mística muçulmana e também pela mudança da perspectiva missiológica católica com respeito ao mundo muçulmano. Na visão de Henri Teissier, ele representou para a igreja católica o papel de “precursor incontestável, artesão incansável e testemunho extraordinário do empenho evangélico em favor da solidariedade espiritual com o islã e mais em geral com todos aqueles que buscam o absoluto no nosso tempo”.[2] Um traço original de sua vida foi a capacidade de conjugar pesquisa e vida, empenho acadêmico e desvelo espiritual. Trata-se de alguém marcado por grande sensibilidade e entranhas de compaixão. Ao testemunhar sobre o amigo Massignon, depois de sua morte, Jacques Maritain sublinhou como traço de sua herança a unidade radical entre a ciência mais erudita, a “devoradora sede mística de justiça e de absoluto” e a “fé extraordinariamente reta e pura”[3].

 

1. O caminho da conversão

 

Louis Massignon nasce no dia 25 de julho de 1883, na cidade de Nogent-sur-Marne (França), sendo filho de um conhecido escultor agnóstico e de uma mãe católica praticante. Recebe sua educação religiosa em Paris, mas num ambiente marcado pela laicidade. O interesse pelo Oriente nasce por ocasião de seus estudos secundários no Liceu Montaigne e Louis-le-Grand, quando então faz contato com Henri Masperò e a biblioteca de seu pai, o conhecido egiptólogo Gaston Masperò. As primeiras angústias metafísicas o acompanham desde este período. Traços significativos da personalidade de Massignon são revelados em sua correspondência com o amigo Henri Masperò. Nas primeiras cartas, datadas de 1901, já se capta a sua “insaciável curiosidade de espírito”[4].  Termina o bacharelado em 1900 e se inscreve na universidade onde faz seus estudos de letras e história. Sua primeira viagem em terras muçulmanas (Argéria) acontece em 1901, quando tinha 17 anos. A escolha do tema de seus estudos na universidade[5] cria as condições para outras viagens aos países muçulmanos. Durante o período em que faz o serviço militar, nos anos 1902 e 1903 em Rouen, perde a fé cristã de sua infância. Em 1906 diploma-se em árabe na Escola de Linguas Orientais, sendo igualmente nomeado no mesmo ano membro do Instituto Francês de Arqueologia Oriental no Cairo, o que favoreceu sua dedicação em tempo integral ao estudo da arte e da civilização árabe[6]. Durante uma missão arqueológica na Mesopotâmia, nos anos 1907-1908, vem aprisionado no rio Tigre pela polícia turca e acusado de espião. A experiência suscita uma forte crise religiosa, que culminou em tentativa de suicídio, em 3 de maio de 1908. Foram feitas na ocasião inúmeras especulações sobre sua saúde.[7] É no contexto desta dolorosa experiência que se dá o processo de conversão de Massignon, identificada pelo evento da “visita do Estrangeiro”[8]. Sobre este episódio, Massignon guardou segredo por muito tempo, só revelando o seu significado  em texto publicado sete anos antes de sua morte: “Ele acendeu um fogo no meu coração onde a faca havia falhado, cicatrizando o meu desespero que Ele havia lacerado, como a fosforescência de um peixe ressurgido do fundo das águas abissais”.[9] Este evento transfigura o universo para Massignon, proporcionando-lhe novo alento vital. Para a retomada de sua fé foi de fundamental importância a hospitalidade que encontrou junto a alguns amigos muçulmanos[10]. Em carta de 1938  assinala o lugar que teve o islã em sua conversão:

 

É bem verdade que sou crente, profundamente cristão, católico. E não é menos verdade que se  retornei à minha crença, há trinta anos, depois de cinco anos de incredulidade, deve-se aos amigos muçulmanos de Bagdá, os Alussy (...). É em árabe que falaram de mim a Deus, suplicando-lhe, e de Deus a mim; é em árabe que pensei e vivi minha conversão, em maio-junho de 1908 (...). Daí o meu profundo reconhecimento ao islã, do qual dou testemunho em todos meus trabalhos científicos.[11]

 

Quem acompanhou bem de perto todo esse processo de conversão de Massignon, foi o amigo Paul Claudel (1868-1955). São inúmeras as cartas que, nesse período, traduzem a grande amizade espiritual que se firmou entre os dois companheiros. Paul Claudel foi não só o confidente próximo como também o grande interlocutor de Massignon após o evento de sua conversão. Em carta dirigida a Claudel, em fevereiro de 1911, Massignon assinala a presença dos árabes em sua conversão e a importância de sua experiência na Mesopotâmia, em 1908, quando então se cauteriza o seu agnosticismo. Reconhece que é ali na Mesopotâmia que acontecem as mais ricas ocasiões para o decisivo aprendizado de que é no sacrifício integral que se amplia a potencialidade do amor[12].

 

É significativo perceber como foi mediante a hospitalidade islâmica que Massignon descobriu o sentido do sagrado. Em singular passagem de seu diário, Paul Claudel relata com cores vivas o processo de conversão de Massignon, que a ele foi relatado pelo amigo em confidência e segredo. Ao final de um longo e doloroso caminho, que esbarrou na sedução do suicídio, Massignon foi tocado por teofanias singulares: a visita do estrangeiro e o encontro com o Deus de Abraão, a revelação da verdade (haqq) no bater das asas das pombas no hospital muçulmano de Bagdá, e a profonda sensação da presença de Deus como o Pai que acolhe o filho pródigo[13].

 

O estudioso, Guy Harpigny, assinala a presença de três ciclos no itinerário de vida de Louis Massignon: o ciclo de Hallaj, o ciclo de Abraão e o ciclo de Gandhi[14]. O primeiro ciclo conclui-se com a realização da grande pesquisa de Massignon sobre o místico persa muçulmano al-Hallaj (858-922)[15], que resultou em sua tese doutoral, defendida em 1922. O segundo ciclo envolve as novas pesquisas de Massignon que avançam até sua ordenação sacerdotal, em 1950. O terceiro ciclo acompanha o período final da vida de Massignon, marcado por seu engajamento temporal e sua compaixão universal.

2. O ciclo de Hallaj: Um outro olhar sobre o islã

 

Louis Massignon percebe no caminho do Oriente a possibilidade de retomada do coração. Não mais lhe satisfaz o deserto frio e estéril do racionalismo, mas a riqueza viva e emotiva do universo simbólico do islã. O conhecimento do árabe favoreceu-lhe o acesso aos escritores, poetas, filósofos e sobretudo os místicos sufis (persas e árabes). Mediante a leitura do Memorial dos Santos, do grande místico persa Farid ud din Attar (sec. XII), toma conhecimento de outro grande nome do sufismo, Hussayn Mansur al Hallaj (857-922), que se tornará seu grande objeto de reflexão e estudo. Assim que tomou conhecimento da obra de al Hallaj, em 24 de março de 1907, no Cairo, Massignon  decidiu dedicar seu doutorado em letras ao estudo do grande mártir místico do islã. Comunica sua decisão ao pai em abril do mesmo ano, em carta onde fala do encanto que lhe produz a cor intensa e o andamento trágico do martírio de al Hallaj.[16]

 

Sua tese foi concluída em 1914, mas em razão da guerra só pôde ser apresentada na Sorbone em 24 de maio de 1922.  Uma parte do manuscrito, consignado na tipografia de Louvain, foi destruído pelo fogo dos primeiros bombardeamentos da cidade, em 1914. A volumosa tese teve como título: La passion de Husayn Ibn Mansûr Hallaj: martyr mystique de l´islam exécuté à Bagdad le 26 mars 922[17].

 

Louis Massignon foi profondamente marcado pela experiência vital de al-Hallaj, uma das mais extraordinárias figuras da mística muçulmana. Tratava-se, a seu ver, de um grande “amante de Deus”, que conseguiu alcançar um excepcional nível de união com o divino. Em carta de 1949, Massignon relata a força dessa presença em sua vida: alguém que o ajudou a compreender a cruz e a rezar em árabe[18]. Seu objetivo maior era, mediante o léxico de al-Hallaj, alcançar o “coração do islã”[19], deixando-se hospedar pela tradição mística do islã. Na especificidade dos textos místicos, de sua linguagem peculiar, encontrava a chave de acesso ao Real e a experiência única de “comoção mesma do contato divino”[20]. Como mostrou Roger Arnaldez, foi mediante a espiritualidade hallajiana que Massignon discerniu o lugar singular de abertura do islã ao cristianismo, e pela razão dessa mística favorecer um “sentido e verdade à unidade do monoteísmo abraâmico”[21]. Por intermédio da mística de al-Hallaj, Massignon descobre a sintonia que enlaça o islã ao cristianismo através da perspectiva maior do amor.

 

Em testemunho sobre a espiritualidade de Massignon, Roger Arnaldez sinaliza a íntima ligação da espiritualidade com a língua. Não há nada de acessório na utilização de uma língua na reflexão sobre a mística. No caso do árabe, trata-se de uma língua vista como essencial para o acesso ao Mistério Divino, e os muçulmanos o reconhecem profundamente. Também Massignon confidencia o valor dessa língua, mediante a qual acessou o mistério de Cristo[22]. Trata-se de uma das línguas mais sublimes, como bem sinalizou Marco Lucchesi:

 

Uma das portas do sagrado. Fogo primordial. Tempo forte. Tempo mítico. Para Massignon, o árabe não sofre a anemia das línguas modernas. Sua estratégia é outra. Não se utiliza de períodos amplos e hierarquizados (…). O árabe coagula e condensa, com a força do ferro e o brilho do cristal, a idéia que emerge do Sagrado (…). E as letras são vassalos da revelação. Estrelas em órbitas de fogo, consoantes em chamas, altas e indecifráveis, que aos poucos se agregam umas às outras – formando sistemas estelares -, a seguir o rumo dos astros, do oriente ao ocidente[23].

 

Curiosa essa confidência de Massignon, ao assinalar a presença de um místico muçulmano na abertura de horizontes para a compreensão do mistério cristão. Esse allargamento de horizontes vem reconhecido por Jacques Maritain, ao tratar da importância da abertura inter-religiosa vivenciada por Massignon. Sinaliza o exemplo do estudo de al-Hallaj, realizado por Massignon, como prova da possibilidade de que sábios e eruditos de outras tradições religiosas possam ajudar a clarificar a própria tradição cristã[24].

 

Movido pela sedução do martírio de al-Hallaj, Massignon interessou-se pelo tema dos sete santos dormentes de Éfeso. São mártires da fé, venerados por cristãos e muçulmanos, que encontraram o dom da ressurreição depois de terem sido murados vivos[25]. Segundo a cifra muçulmana[26], eles permaneceram 309 dias em “sono sagrado nas mãos de Deus”, até encontrarem a Ressurreição final. Esse número “309” ganha um simbolismo particular para Massignon, pois converge com a data do martírio de al-Hallaj, ocorrido no ano de 309 do calendário muçulmano. Esse culto dos sete dormentes encontra uma ressonância singular em muitos países, inserindo-se hoje na dinâmica da busca de uma ecumene abraâmica. Após 1954, no final de julho de cada ano, sob o impulso de Massignon, cristãos e muçulmanos encontram-se na Bretanha para orar em favor de uma “paz serena”, selados pela fé na ressurreição em Deus[27].

Em razão de sua comprovada competência no campo dos estudos islâmicos, Massignon encontrará um amplo espaço na carreira universitária e acadêmica. Em junho de 1919 vem proposto como sucessor de A.Chatelier no Collège de France, na cadeira de sociologia e sociografia muçulmanas, permanecendo como docente de forma ininterrupta até o ano de 1954. Em 1933 vem nomeado como diretor dos estudos em ciências religiosas na École Pratique des Hautes Études, bem como presidente do Instituto de Estudos Iranianos. Teve um papel importante na direção da Revue du monde musulman, com a produção de inúmeros artigos. Atuou igualmente no Annuaire du Monde Musulman, respondendo pelas edições de 1926, 1929 e 1954. Atuou ainda em prestigiosas instituições acadêmicas e científicas tanto no mundo ocidental como do mundo árabe-muçulmano. Foram também inúmeros os convites para professor visitante nos Estados Unidos, Canadá, Egito e Irã.

 

3. O ciclo de Abraão: O desafio da hospitalidade

 

A visão dialogal de Massignon está toda ela fundada na importante noção de hospitalidade. Trata-se de uma palavra chave na compreensão da personalidade de Massignon. A hospitalidade  (diyâfa) é para ele um dever sagrado que deve se estender a todos os domínios, incluindo  o religioso e místico. Este apelo da hospitalidade  foi fruto de seu aprendizado com os árabes, que lhe ensinaram que o dever de hospitalidade vem exercitado em nome de Deus; um apelo que se enraíza no projeto de Abraão, o grande precursor das tradições religiosas  semíticas, que instaura a hospitalidade celebrada na acolhida do estrangeiro (Gn 18,1-16[28]).  Com os muçulmanos Massignon conseguiu captar o mistério essencial de um Deus de hospitalidade.[29]  

 

A reflexão em torno de Abraão será central na vida de Massignon, envolvendo o coração mesmo de sua aventura espiritual e informando a novidade de sua visão sobre o islã. Esta presença ganha vitalidade em sua espiritualidade cotidiana, com as três orações de Abraão, recitadas a cada Angelus após julho de 1920[30]. Será também fundamental no engajamento político de Massignon em favor da Palestina, na sequência dos acontecimentos de 1947: a retomada do apelo de Abraão em favor de Jerusalém como a cidade de eleição de todos os crentes[31].

 

Em sua clássica reflexão sobre as três orações de Abraão, reunidas em obra de 1997, Massignon trata da legitimidade do islã, entendido como uma religião “centrada na fé”[32]. Esse tema foi particolarmente desenvolvido na parte dedicada à hégira de Ismael, que traduz a reflexão mais articulada e ampla do livro. Esse autor fala do islã como um “bloco espiritual autêntico e homogêneo”, já que cimentado na “fé do verdadeiro Deus, que provém de Abraão”[33].

 

O apelo da hospitalidade em Massignon abre um espaço singular para a acolhida do outro em sua especificidade, enquanto “proprium”, enquanto “alter” (e não “aliud”), enquanto alguém que é mistério impenetrável e irrepetível. Não é possível para ele captar o seu significado senão mediante o gesto da aproximação desarmada de preconceitos. Exige-se para tanto mais do que simples boa vontade, mas o gesto ousado de “penetrar através do logos no mithos do outro”, hospedando-se no seu interior. Todo o trabalho de pesquisa e, sobretudo, o estilo de sua vida espiritual estará marcado por este “método interiorista”, que indica que uma tradição religiosa só pode ser verdadeiramente conhecida a partir de dentro: “Entrando na casa do islã pela porta privilegiada da mística, conseguiu conhecer intimamente a religião dos filhos de Ismael; do alto da santidade, encarnada sobretudo por Hallaj, pôde estender o seu olhar, tornado agudo e penetrante pela própria experiência religiosa, para a imensa e contrastante terra do islã, oferecendo dela um importante afresco em seus escritos”.[34] A presença de al-Hallaj na vida de Massignon foi um fator decisivo para a sua percepção da importância do “critério de experimentação interior” para a percepção de uma outra tradição religiosa[35].

 

A hospitalidade é também para Massignon um requisito essencial para a busca da verdade. Esta acontece no bojo de uma relação espiritual serena, de acolhida mútua entre interlocutores que buscam um horizonte fraterno. Não há como compreender o outro senão tornando-se seu hóspede. Este é um tema recorrente na reflexão da Massignon. O verdadeiro encontro com o outro não acontece mediante o caminho de sua anexação, mas do exercício autêntico de hospitalidade. É mediante o trabalho de partilha do mesmo pão, do mesmo trabalho e da mesma vida que a verdade pode vir à tona[36].

 

 A abertura ao islã possibilitou  a Massignon  descobrir com maior profundidade  algumas dimensões  inusitadas  do mistério divino. O seu catolicismo não ficou enfraquecido com o diálogo, mas enriquecido com a nova visada: tornou-se mais exigente. Ao oferecer uma visão mais amorosa e interna do islã, contribuiu decisivamente para uma mudança de perspectiva na visão católico-romana sobre o tema, abrindo o caminho para a colaboração e o diálogo islamo-cristão.  Há hoje um reconhecimento explícito sobre o influxo exercido por Massignon em textos decisivos do concílio Vaticano II que tratam das religiões não cristãs, em especial do islamismo. Tanto o número 16 da Constituição Dogmática Lumen Gentium, sobre a igreja, como o texto da Declaração sobre as religiões não cristãs, Nostra Aetate, refletem esta influência. Há que recordar os laços de grande amizade que unia Massignon a Paulo VI.[37] Na visão de Robert Caspar, que foi perito no Concílio Vaticano II e consultor junto ao Secretariado para os não cristãos, Massignon contribuiu de forma decisiva para a mudança de perspectiva na Igreja católico-romana com respeito ao islã. Abriu-se com ele uma “brecha significativa no compacto muro de desconfiança e incompreensão que separava o islã do cristianismo até a primeira metade do século XX”[38]. 

 

Na trillha aberta por Massignon surgiram novos pensadores e teólogos católicos dedicados ao tema do diálogo com o islã, entre os quais podem ser citados: Georges Anawati, Jacques Jomier, Jean-Mohammed Abd-el-Jalil, Serge de Beaurecueil, Maurice Borrmans, Robert Caspar, entre outros[39].

 

4. O ciclo de Gandhi: A dinâmica da compaixão

 

Na perspectiva aberta por Massignon, a compaixão é um alargamento da hospitalidade. Na última etapa de sua vida, esse tema da compaixão será para ele decisivo. Tendo se aposentado em 1954, firma-se seu compromisso social e político, já pontuado pelo engajamento em favor dos palestinos. É onde entra a inspiração de Gandhi. O primeiro contato com Gandhi se deu em 1912, por ocasião de sua breve passagem por Paris, tendo-o reencontrado ali em 1931. Nele encontrava Massignon algo de precioso e um fermento novo para sua vida espiritual:

Talvez pela primeira vez no mundo, um homem teve tamanha influência sobre os povos de outras religiões, com resultados importantes na ordem social. Na Europa, perdemos o senso do sagrado na vida social, mas através de pessoas como Gandhi poderemos reencontrá-lo[40].

 

   Os ideais de Gandhi vão penetrando sua visão de mundo até ganhar sua marca decisiva nos anos posteriores a 1953. Na fase derradeira da vida de Massignon, todas as suas ações e julgamentos serão inspirados pelo pensamento de Gandhi[41]. A noção mesma de hospitalidade vem agora aprofundada e envolvida pela dinâmica da compaixão pelo outro. A admiração suscitada em Massignon por Gandhi deve-se sobretudo à sintonia das escolhas nos âmbitos moral e espiritual. Pode-se também acrescentar o toque de sua exemplaridade, bem como de sua reivindicação cívica em favor do verdadeiro (satyagraha). Há também comunhão no campo da espiritualidade, fundada em valores semelhantes como a oração, o jejum e a peregrinação, bem como no âmbito da opção comum pelos pobres. Não há como desconhecer a presença de Gandhi na inspiração da dinâmica de compaixão-substituição presente em Massignon, em particular na sua atenção para com os oprimidos e na sua ampla solidariedade[42]. Como assinala Rocalve, Massignon sente-se

 

envolvido na política da França com respeito aos povos muçulmanos. Sua carreira de islamólogo e seu desejo pessoal de reconhecimento do islã, de hospitalidade do islã, convergem no serviço a todos os muçulmanos golpeados pela injustiça na Palestina, no Maghreb, na metrópole (visitas aos prisioneiros, acorrida aos operários argelinos)[43]

 

Em carta de abril de 1948, Massignon firma o seu compromisso: “Estou cada vez mais decidido a manter minha ´shahada`[44] em favor da justiça até a morte”[45]. Como indica Edward Said, esta atuação prática e humanista era o que para ele havia de melhor em Massignon. Ele “era um lutador incansável em defesa da civilização muçulmana e, como demonstram seus numerosos ensaios e cartas após 1948, em defesa dos direitos dos árabes muçulmanos  e cristãos na Palestina contra o sionismo, contra aquilo que, em referência a alguma coisa dita por Abba Eban, ele chamou severamente de ´colonialismo burguês`israelense”.[46]  Estava sempre antenado com os problemas de seu tempo. Vale lembrar o seu papel na criação do Instituto Dar Es Salam (a casa da paz), ocorrida em 1947 no Cairo e sua presença nas obras de misericórdia no núcleo dos amigos de Gandhi.

 

5. Caminhos de vida interior

 

Massignon deixa rastros importantes também no âmbito da vida espiritual. Juntamente com Mary Kahil[47], funda em fevereiro de 1934 a Badaliya[48],  um espaço garantido para a vida de oração e a hospitalidade do coração. Tratava-se de um lugar de acolhida do outro, do estrangeiro. Na Badaliya “toma forma um modelo de espiritualidade interconfessional que suscita uma concepção teológica-mística do ´diálogo` para além dos modelos sócio-culturais evocados pela cultura humanista”.[49] Em pacto concluído na ocasião pelos dois na igreja franciscana de Damiette, local onde São Francisco apresentou-se ao sultão al-Malik al Kâmil, decidem fazer o oferecimento de suas vidas aos muçulmanos. Não para que se convertessem ao cristianismo, mas “para que a vontade de Deus pudesse ser feita para eles e por eles”. A experiência da Badaliya é assumida pelos dois como um “voto de substituição”e um convite a viver a santidade em meio aos muçulmanos. Traduzindo ao padre jesuíta Bonneville, no Cairo, a força da opção realizada pelos dois, Mary Kahil assim se expressa: “Queremos fazer nossas as suas orações, nossas as suas vidas, apresentando-as ao Senhor”.[50] A partir de 1934, ano da fundação da Badalliya, Massignon  vai se aproximando  cada vez mais da comunidade católica melquita, de rito bizantino, até fazer sua transferência definitiva para ela em 1949, sob autorização de Pio XII. Era o passo que faltava para sua maior comunhão, enquanto cristão, com os árabes. Em janeiro de 1950 vem ordenado sacerdote na igreja grego melquita Sainte-Marie-de-la-Paix. 

 

Para o crescimento espiritual de Massignon foi muito importante a presença de  Charles de Foucauld (1858-1916). Foi algém  decisivo no processo pessoal de afirmação da vocação espiritual e solidária de Massignon em favor do islã. Os dois sempre estiveram unidos por uma grande e profunda amizade, apesar da diferença de idade de 25 anos. Foucauld torna-se para Massignon um intercessor, confidente e amigo: um autêntico “diretor espiritual”. A intimidade espiritual entre os dois está registrada na correspondência regular mútua que se inicia em novembro de 1908, e que soma cerca de 80 cartas. Em clara proposta de vida monástica, Foucauld faz em setembro de 1909 um convite a Massignon para prosseguir seus estudos teológicos junto a ele no deserto. Ainda que seduzido pela proposta, Massignon acaba optando pelo matrimônio, que veio a realizar-se em 27 de janeiro de 1914, em Bruxelas. O caminho escolhido por Massignon ganha a acolhida carinhosa de Foucauld. No mesmo mês do casamento, uma bela carta de Foucauld a Massignon expressava o valor da nova e maravilhosa opção realizada pelo amigo, de uma vocação dada por Deus para viver a santidade do matrimônio no mundo.[51]

 

Para Massignon, o amigo Foucauld representava um “arco estendido para um Absoluto, para a Verdade”. Tornou-se dele um discípulo ao longo da caminhada, buscando beber intensamente sua “experiência vital do sagrado junto aos outros”, e também o desafio essencial do compromisso com os irmãos mais pobres. Via a necessidade de intensificar seu contato espiritual com o mestre para poder captar “sua iniciação experimental à compreensão verdadeira da condição humana, sua ciência experimental da compaixão”. O que pressentia por experiência pessoal, viu realizado na prática vital de Foucauld: a importância de optar pelos muçulmanos, enquanto filhos de Abraão, esses “misteriosos excluídos das preferências divinas na história”. Aprendeu também a centralidade do anúncio do evangelho pela via da humildade, do exercício da hospitalidade, entendido como “verdadeiro pão espiritual”[52]. São, portanto, três os aspectos que unem o pensamento de Massignon a Charles de Foucauld: a visão comum sobre a responsabilidade da França com respeito aos países colonizados; a partilha da hospitalidade, entendida como valor sagrado; a percepção da dignidade única de cada ser humano, sobretudo dos mais abandonados e excluídos, nos quais pulsa uma experiência vital do sagrado[53].

 

Conclusão

 

O grande legado de Louis Massignon insere-se no campo do diálogo do cristianismo com o islã. Ele favoreceu, sem dúvida alguma, uma nova visada sobre essa tradição religiosa que para o Ocidente representou um “trauma duradouro”. Apontou caminhos singulares para uma percepção do islã a partir de dentro, buscando discernir o “sopro do islã”, sobretudo a partir da contribuição dos grandes místicos da tradição sufi, em particular al-Hallaj. Privilegiou o caminho do coração, como lugar privilegiado de acesso ao “segredo divino”. Defendia e acreditava com vigor na idéia de que o melhor caminho de acesso ao outro é mediante a empatia, a simpatia e a hospitalidade. Foi um pioneiro do diálogo inter-religioso, abrindo canais alvissareiros para a abertura do cristianismo ao islã.  Como bem sinalizou Édouard-Martin Sabanegh, um de seus discípulos, Massignon foi o grande artesão na mudança de perspectiva do mundo cristão com respeito ao islã[54], com um substantivo influxo no Concílio Vaticano II. No mundo católico, foi ele um dos pioneiros no reconhecimento do islã como religião abraâmica. Os testemunhos sobre eles são diversificados. O papa Pio XI referiu-se a ele como um “muçulmano católico” . O grande orientalista Jacques Berque identificava-o como um “sheikh admirável”. O irmãozinho de Jesus, René Voillaume, encontrou nele “um testemunho privilegiado da herança espiritual de Charles de Foucauld”. Esse reconhecimento aconteceu também no mundo muçulmano, onde vem reverenciado ainda hoje com reconhecimento e respeito. Insere-se no amplo leque dos buscadores do diálogo, que fizeram de sua trajetória de vida uma aventura arriscada e exigente de deixar-se envolver pelo enigma do outro.

 

(Publicado na Revista Perspectiva Teológica, Ano XLII, n. 116, jan/abr 2010, pp. 77-90)

 



[1] Para Marco Lucchesi, amigo e irmão nessa linda aventura espiritual de encontro com o outro.

[2] H. TEISSIER, “Prefazione, Louis Massignon um precursore, um artigiano e un testimone del dialogo interreligioso”, in J. KERYELL, Il giardino di Dio. Con Louis Massignon incontro all`islam, Bologna: EMI, 1997, p. 10.

[3] Apud J. KERYELL, Il giardino di Dio, p. 25.

[4] G. BASETTI SANI, Louis Massignon, Firenze: Alinea, 1985, p. 59.

[5] O tema escolhido foi “Tableau géografique du Maroc d´après Léon l´Africain”. Apresenta o seu trabalho no ano de 1904, sendo o mesmo publicado em 1906 na Argéria. O seu trabalho chega ao conhecimento de Charles de Foucauld, em seu eremitério de Beni-Abbès, na Argéria,  abrindo espaço para uma amizade que o acompanhará em toda vida.

[6] Antes dos estudos de árabe, Massignon dedicou-se ao estudo do sânscrito sob a orientação de Silvan Levi (1863-1935), reconhecido indianista francês.

[7] Falou-se em turbamento de consciência,  crise de demência,  crise aguda de malária e congestão cerebral. Cf. J. KERYELL, Il giardino di Dio, pp. 89, 93, 100, 101; D. MASSIGNON, Le voyage en Mésopotamie et la conversion de Louis Massignon en 1908,  Paris: Cerf, 2001, pp. 10, 28-30, 53ss.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                      

[8] Para esse tema da “visita do estrangeiro” cf. L. MASSIGNON, Parole donne, Paris: Seuil, 1983, p. 283; L. MASSIGNON, Mystique en dialogue, Paris: Albin Michel, 1992, pp. 6-8 (Question De, numero 90); L. MASSIGNON, L´hospitalité sacrée, Paris: Nouvelle Cité, 1987, pp. 40-45; D. MASSIGNON, Le voyage en Mésopotamie et la conversion de Louis Massignon em 1908, Paris: Cerf, 2001, pp. 58-59.

[9] L. MASSIGNON, L´hospitalité sacrée, p. 40.

[10] Massignon encontrou acolhida entre os Alussi, que responderam em seu favor junto às autoridades turcas que o haviam condenado como espião. Na intercessão em favor de Massignon, assinalam que ele é membro da família, um hóspede sagrado, que não pode ser eliminado. Ele foi, assim, salvo em 1908 por ser hóspede, e isso marcou Massignon pelo resto de sua vida. Ver a respeito: G. BASETTI SANI, Louis Massignon (1883-1962), Firenze: Alinea, 1985, p. 241.

[11] L. MASSIGNON, L´hospitalité sacrée, p. 204 (carta a A.M. Noureddin Beyum – 26 de fevereiro de 1938).

[12] Apud J. KERYELL, Il giardino di Dio, p. 57. Ver também pp. 70-71.

[13] Apud J. KERYELL, Il giardino di Dio, pp. 99-104.

[14] G. HARPIGNY, Islam et Christianisme selon Louis Massignon, Louvain-la-Neuve, 1981: Ver também a respeito: P. ROCALVE, Louis Massignon et l´islam, Damas: Institut Fraçais de Damas, 1993, p. 15.

[15] Para maiores detalhes de sua vida cf. L. MASSIGNON, Ciencia de la compasión, Madrid: Trotta, 1999, pp. 39-74 (Al-Hallâj místico del islam e Vida de Halâj); A. SHIMMEL, Le soufisme ou les dimensions mystiques de l´islam, Paris: Cerf, 1996, pp. 89-106; S. RUSPOLI, Le message de Hallâj l´expatrié, Paris: Cerf, 2005, pp. 15-53.

[16] J. KERYELL, Il giardino di Dio, p. 53. Relata também o papel central de al Hallaj em sua vida, em carta à sua mulher: cf. Louis MASSIGNON. L´hospitalité sacrée, p. 60. Fala a ela da importância do místico não só para a afirmação de sua personalidade científica e posição universitária, mas também para sua acolhida do mistério de Deus.

[17] A tese foi publicada em dois volumes pela editora Geuthner de Paris, em 1922. Uma nova edição foi posteriormente publicada em 4 volumes pela Gallimard de Paris, em 1975. Como tese complementar  ele apresentou o Essai sur les origines du lexique technique de la mystique musulmane, publicada inicialmente  em Paris em 1922, pela editora Geuthner, reeditada posteriormente em Paris: Editions du Cerf, 1999. Ainda sobre al-Hallaj, Massignon traduziu para o francês, seu Dîwân, em 1936, posteriormente reeditado em 1938, 1955 e 1981. Outras conferências e artigos de Massignon foram publicados em sua Opera Minora, uma coletânea de 207 artigos publicados em 3 volumes e editados por Youakin MOUBARAC (Beyrouth: Dar al-Maaref, 1963).

[18] L. MASSIGNON, L´hospitalité sacrée, p. 258.

[19] L. MASSIGNON, La passion de Hallâj, Paris: Gallimard, p. 10 (Tome III).

[20] L. MASSIGNON, Ciencia de la compasión, Madrid: Trotta, 1999, p. 78.

[21] R. ARNALDEZ, “Sa spiritualità”, in L. MASSIGNON, Mystique en dialogue, p. 107.

[22] Ibidem, pp. 103-104.

[23] M. LUCCHESI, Os olhos do deserto, Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 61.

[24] J. MARITAIN, O camponês do Garzona, Lisboa: União Gráfica, 1967, p. 97.

[25] Ver a referência aos sete dormentes na Sura 18 do Corão, denominada Sura da Caverna (Al-Kahf).

[26] Corão 18:25.

[27] L. MASSIGNON, L´hospitalité sacrée, pp. 291-292 e 364-365; J. KERYELL, Il giardino di Dio, p. 31-32; C. DREVET (Ed.), Massignon et Gandhi. La contagion de la verité, Paris: Cerf, 1967, p. 28.

[28] Esses “honrados hóspedes” de Abraão serão recordados também no livro do Corão (15:51 e 51:24).

[29] R. ARNALDEZ, “Sa spiritualità”, in L. MASSIGNON. Mystique en dialogue, 102.

[30] Trata-se da tríplice oração patriarcal de Abraão, baseada na experiência da aparição de Iahweh no Carvalho de Mambre, descrita no livro do Gênesis 18,1-3. São as orações por Sodoma, Ismael e Isaac, trabalhadas e desenvolvidas por Massignon em sua preciosa obra: Les trois prières d´Abraham, Paris: Cerf, 1997 (As duas primeiras orações tinham sido antes publicadas à parte, em 1930 e 1935; e a última, dedicada a Isaac não ganhou publicação independente).

[31] Em intervenção de Massignon  na Semana dos Intelectuais Católicos, em maio de 1949 em Paris (“La foi aux dimensions du monde”), ele assinala o significado de Abraão em sua vida, refazendo como seu o itinerário de Abraão, finalizado em Jerusalém. Sinaliza ter compreendido, com o Pai de todos os crentes, que a Terra Santa não poderia ser um “monopólio de uma raça, mas a Terra prometida a todos os peregrinos como ele”. Cf. P. ROCALVE, Louis Massignon et islam, pp. 30-31.

[32] L. MASSIGNON, Les trois prières d´Abraham,  p. 98. Por sua vez, a religião judaica se enraiza, a seu ver, na esperança e o cristianismo na caridade.

[33] Ibidem, p. 106.

[34] D. CANCIANI, “L´altro volto dell´islam”, in L. MASSIGNON, La suprema guerra santa dell´islam, Troina: Città Aperta, 2003, p. 12. A propósito do método interiorista ver ainda: L. MASSIGNON, L´ospitalità de Abramo, p. 14 (Introduzione de Domenico Canciani);

[35] L. MASSIGNON, La passion de Hallâj, pp. 10-12 (Tome 3). Ver a propósito: P. ROCALVE, Louis Massignon et l´islam, p. 102. Vale também registrar a importância dada por Massignon ao coração, como “órgão preparado por Deus para a contemplação”: ibidem, p. 26. Ver também: L. MASSIGNON, “Il ´cuore`(al-qalb) nella preghiera e nella meditazione musulmane”, in Id, Il soffio dell´islam. La mistica araba e la letteratura occidentale, Milano: Medusa, 2008, pp. 119-126.

[36] P-F BÉTHUNE, L´hospitalité sacrée entre les religione, Paris: Albin Michel, 2007, pp. 136-137 e 203; G. BASETTI SANI, Louis Massignon (1883-1962), p. 74.

[37] L. MASSIGNON, L´hospitalité sacrée, p. 141; Id, Ciencia de la compasión, Madrid: Trotta, 1999, p. 40, n. 3 (em nota de Jesús Moreno Sanz). Em sua viagem à Terra Santa, em 1964, o papa Paulo VI acolheu em âmbito da reflexão magisterial, em sintonia com Massignon, a idéia de três religiões abraâmicas. Ver a respeito: G. BASETTI SANI, Louis Massignon (1883-1962), p. 79.

[38] L. MASSIGNON, L´hospitalitá di Abramo, p. 20 (introduzione de Domenico Canciani). Ver também: M. L. FITZGERALD, “Relações entre as religiões abraâmicas”, in: B. E. HINZE, Herdeiros de Abraão, São Paulo: Paulus, 2007, pp. 87-88.

[39] Para uma reflexão a respeito ver: J-J PÉRENNÈS, Georges ANAWATI (1905-1994). Un chrétien égyptien devant le mystère de l´islam, Paris: Cerf, 2008; Massignon - Abd-el-Jalil. Parain et filleul (1926-1962). Correspondance. Paris: Cerf, 2007; M. BORRMANS, Orientamenti per un dialogo tra cristiani e musulmani, Roma: Pontificia Università Urbaniana, 1991; R. CASPAR, Para una visión cristiana del islam, Santander: Sal Terrae, 1995.

[40] Intervenção de Masssignon sobre Gandhi em Seminário organizado pela Unesco, em Janeiro de 1953, in C. DREVET (Ed), Massignon e Gandhi, La contagion de la vérité,  p. 112.

[41]C. DREVET (Ed), Massignon et Gandhi,  p. 44.

[42] G. RIZZARDI, L.Massignon (1883-1962). Un profilo dell´orientalista cattolico, Milano: Glossa, 1996, pp. 60-61. É conhecido o texto de Massignon onde ele apresenta a exemplaridade singular de Gandhi: Louis MASSIGNON, Parole donne, pp. 130-139.

[43] P. ROCALVE, Louis Massignon et l´islam, p. 140.

[44] Profissão de fé ou testemunho.

[45] L. MASSIGNON, L´hospitalitè sacrée, p. 250. E continua, na sequência: “Notre vocation c´est de justifier Dieu, de le faire aimer par ceux-là mêmes à qui Il manque et qui semblent abandonnés: les pauvres, les exclus, les inconsolés. C`est cela que Jésus a fait en venanti ici-bas à l´appel de Marie”.

[46] E. SAID, Orientalismo. O Oriente como invenção do Occidente, São Paulo: Companhia das Letras, 2001, pp. 274-275.

[47] Tendo conhecido Massignon em 1912-1913, Mary Kahil (1889-1979) viverá uma experiência de intensa comunhão espiritual com Massignon. Os dois exerceram grande influência no diálogo islamo-cristão. Para maiores detalhes cf. Louis MASSIGNON, L´hospitalité sacrée, p. 77ss.

[48] Seu significado em árabe é “substituição”.

[49] G. RIZZARDI,  L.Massignon (1883-1962). Un profilo dell´orientalista cattolico, p. 150.

[50] L. MASSIGNON, L´hospitalité sacré, p. 101.

[51] C. FOUCAULD, Opere spirituali, Roma: Paoline, 1984, p. 722,

[52] L. MASSIGNON, Parole donne, pp. 63-64 (Toute une vie avec um frère parti au désert: Foucauld).

[53] G. RIZZARDI. L.Massignon (1883-1962). Un profilo dell´orientalista cattolico, p. 60.

[54] J-J PÉRENNÈS, Georges ANAWATI (1905-1994). Un chrétien égyptien devant le mystère de l´islam, p. 84.